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Violência doméstica e TIR

por Sarin, em 24.03.20

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Uma mulher de 60 anos agrediu um homem de 45. Este chamou a polícia, que deteve a agressora por suspeita de violência doméstica. Levada a tribunal para primeiro interrogatório, apurou-se que não teria sido o primeiro episódio de violência doméstica verificado. Foi aplicada à agressora a mais leve medida de coacção, o Termo de Identidade e Residência, conhecido como TIR [o TIR, não a TIR].

 

A notícia nada refere sobre a relação entre agressora e vítima mas, tendo sido tratado pelas autoridades como crime de violência doméstica, são certamente coabitantes na mesma residência.

Partindo do princípio de que a vítima retornou à residência, temos o Estado a colocar o agressor no espaço natural da vítima - o que se em situações normais é absurdo e um absoluto desprezo pelos direitos da vítima enquanto cidadão, em pleno estado de emergência é um aval à escalada de violência e das suas consequências.

Caso a vítima tenha sido  encaminhada para um centro de acolhimento, temos o Estado a premiar a agressora, permitindo-lhe permanecer no seu espaço natural, e penalizando a vítima, obrigando-a a abandonar os seus pertences e a refugiar-se num espaço desconhecido.

Pelo contrário, se a vítima voltou para casa porque quis, quis e quis muito bem, pois nada fez de errado para sair - a agressora é quem tem de ser efectivamente afastada, encaminhada para serviços competentes que determinem se a violência resulta de doença psíquica ou de deformação moral, e as medidas de coacção definidas em função do apurado. Compete ao Estado garantir que tal acontece. Mesmo num cenário em que a vítima se prontifica a cuidar da agressora e a chamada para a polícia tenha resultado de uma aflição passageira. A violência doméstica é crime público e as boas intenções fazem vítimas, não há que facilitar numa situação onde o receio ou a ameaça* imperou.

 

Onde estão os Planos de Contingência do Ministério da Justiça? Em situação normal, o Estatuto de Vítima e a forma como com ele se lida carecem de revisão profunda - mais se impõem os ajustes em tempos de confinamento.

E é nestas pequenas coisas que percebemos a inércia dos nossos deputados, a inépcia das nossas forças judiciais e de segurança nas abordagens aos indivíduos, a irrelevância de tantas entidades e associações de apoio humanitário actuando desarticuladas. 

Mas esta abordagem é, apenas, uma nota de rodapé na história da violência doméstica em Portugal.

 

 

* Há quem, lidando com familiares violentos por doença ou dependência, recorra à polícia como forma de tentar incutir-lhes temor pelas consequências dos seus actos, isto sem que tenha real intenção de os ver detidos e julgados. Mais uma vez, as boas intenções fazem vítimas e cabe ao Estado não o permitir - a violência doméstica é crime público também para evitar tais benevolências.

 

 

imagem: "Mulher batendo num homem com vassoura" (autor desc., pintura de Kalighat, 1875), domínio público.

[Cuidemos de todos cuidando de nós: Etiqueta respiratória. Higiene. Distância física. Calma. Senso. Civismo.]
[há dias de muita inspiração. outros que não. nada como espreitar também os postais anteriores]

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lançado às 20:05

Onde ideias-desabafos podem nascer e morrer. Ou apenas ganhar bolor.


Obrigada por estar aqui.



7 comentários

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De /i. a 25.03.2020 às 19:13

Planos de contigência na justiça? Agora são os lares, a seguir são as prisões. A Ministra da justiça já se pronunciou como preparou e se prepara para enfrentar a pandemia nas prisões e afins? Pois... 
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De Sarin a 26.03.2020 às 17:21

Por acaso ouvi falar no plano de contigência das prisões logo no início, na primeira semana de Março. Mas não li em pormenor. Acontece que a Ministra não precisa de se pronunciar, tem é de o accionar e fazer cumprir. E, nesta matéria, a Justiça não se fica pelas prisões - então e os centros de acolhimento de vítimas? Que, na minha opinião, deveriam ser centros de acolhimento de agressores!

Sobre os lares, minha querida /i., o problema é velhíssimo! Andam desde 2014, com a mania de certificar os lares e centros de dia, certificação ISO9001, vê tu!, quando a maioria não consegue reunir equipas que permitam descanso adequado e rotatividade suficiente com os utentes - muitos deles em situações de demência ou de dependência total. E as famílias reclamam que pagam muito, e exigem que os familiares sejam mais bem tratados do que alguma vez foram na vida - como se nutrir e higienizar corpo e roupa (mudada dia sim dia não quando não é duas vezes por dia!), manter sob vigilância a saúde e a medicação, e ainda tentar manter as pessoas ocupadas, com exercício físico e mental não exigisse equipas 24h/dia e instalações higienizadas e funcionais.
Conseguir encontrar pessoal para trabalhar em lares, trabalhar mesmo, não é fácil, nada fácil - principalmente sabendo que ganham pouquíssimo para a responsabilidade que têm, e que dificilmente os lares públicos conseguem pagar o pouquíssimo que os funcionários recebem (as pessoas entram num lar e doam as suas coisas para pagar a estada, por exemplo - que pode ser de dias ou de muitos anos. Mas os bens doados demoram a vender, por vezes acarretam custos adicionais - e os utentes comem todos os dias, são higienizados todos os dias, são entretidos todos os dias, e os funcionários recebem todos os meses. Junta-lhes os familiares que atrasam mensalidades, ou os que não têm familiares e entregam a pensão mas esta não chega e a SS não os comparticipa pois as vagas comparticipadas estão esgotadas) Não, em tempos normais não é fácil porque todos os dias há contingências várias - uma gripe ou um piolho trazido por um familiar, e a desinfecção é de alto a baixo, e os funcionários entram em sobre-esforço. Imagina nesta altura...
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De Sarin a 26.03.2020 às 17:25

Por lares públicos, lê IPSS. Os lares são privados, não públicos, mas às IPSS é-lhes reconhecido o estatuto de Utilidade Pública e estão obrigadas a cumprir as regras dos Contratos Públicos e mais umas quantas obrigatoriedades que condicionam e muito a gestão - e ainda bem que o fazem, já agora :))
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De /i. a 26.03.2020 às 19:18

Os lares melhoraram muito. Mas falta muito caminho para deixarem de ser depósitos de velhos. Os rácios dos recursos humanos são sempre o mínimo. Trabalho exigente e onde devia existir mais fiscalização real epunições efectivas. Os velhotes não são um saco de batatas. É um sector que à solta. Porquê? Porque se se fechar aquele lar, não existe nenhum ao virar da esquina, até pode existir, mas está sobrelotado. E depois? Não podem dormir debaixo da ponte. Forma-se um triângulo de conivências: a família não quer, não pode ter o sénior em casa mas sabe que vive em condições por vezes criminosas. Cala-se. O lar quer pagar  bem aos cargos e chefias de gestão e quer ter menos encargos possível (trabalhadores desmotivados pelo baixo salário não querem saber) calam-se. A Segurança Social fecha os olhos porque não há alternativas de lares quando se fecha um. Temos um problema mas ninguém quer resolver. É preciso dinheiro para se resolver. Espera-se que morram. E que haja mais reformados que possam pagar lares integralmente privados. Os lares das misericordias são de fugir... Utentes com reformas baixas e a restante mensalidade é coberta pela Seg. Social. (Não devia ser mais exigente? Devia, mas é o tal jogo do triângulo).


O agressor sai sempre beneficiado. E não devia ser assim. A lei não muda. A quem beneficia este tipo de decisões? As casas de abrigo deviam mudar de nome para casas de correção, para albergar os agressores (masculinos e femininos). Era um estágio. E deviam estar vigiados para saberem que não compensa ser agressor.
Eu confesso que tinha muitas expectativas por esta Ministra. Mas não tem feito mudanças substanciais. E é pena.  
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De Sarin a 26.03.2020 às 21:20

Não é um sector à solta, /i., não nas IPSS - pelo contrário! O problema da pouca vigilância e muita conivência dos familiares é com os lares particulares não IPSS, acredita. As IPSS têm fiscalizações várias, auditorias sem marcação, multas e, até, encerramentos se for caso disso. E não têm ainda mais porque a SS tem pouco pessoal para tanto trabalho.
E o pessoal não ganha o salário mínimo - todas as IPSS estão obrigadas ao CCT por decreto-lei, com escalões e diuturnidades e etc... mas ganham pouco, para a responsabilidade e para a exigência (turnos, pessoal demente, doente, desatento, acamado, debilitado). Claro que também não têm muita formação - quem tem formação não gosta de turnos e de trabalho aos fins-de-semana.
Voltamos à conversa do trabalho, da remuneração, da qualificação.
E da gestão - a maior parte das IPSS tem uma gestão por voluntários não remunerados que fazem o melhor que sabem... mas nem sempre o fazem de forma profissionalizada.


Esta Ministra foi condicionada: pelos magistrados, pelas Finanças, pela comunicação social.
Esperava-a mais forte; mas é o que temos, pelo menos desfez alguns absurdos herdados.
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De /i. a 26.03.2020 às 19:20

Ah escrevi velhos. Mas não é de forma depreciativa. 
Tenho muito respeito pelos velhotes. Não gosto da palavra idoso.
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De Sarin a 26.03.2020 às 21:01

Já eu, uso a palavra idoso porque velhos são os trapos :)))

[a palavra a quem a quer]




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