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Uma mulher de 60 anos agrediu um homem de 45. Este chamou a polícia, que deteve a agressora por suspeita de violência doméstica. Levada a tribunal para primeiro interrogatório, apurou-se que não teria sido o primeiro episódio de violência doméstica verificado. Foi aplicada à agressora a mais leve medida de coacção, o Termo de Identidade e Residência, conhecido como TIR [o TIR, não a TIR].
A notícia nada refere sobre a relação entre agressora e vítima mas, tendo sido tratado pelas autoridades como crime de violência doméstica, são certamente coabitantes na mesma residência.
Partindo do princípio de que a vítima retornou à residência, temos o Estado a colocar o agressor no espaço natural da vítima - o que se em situações normais é absurdo e um absoluto desprezo pelos direitos da vítima enquanto cidadão, em pleno estado de emergência é um aval à escalada de violência e das suas consequências.
Caso a vítima tenha sido encaminhada para um centro de acolhimento, temos o Estado a premiar a agressora, permitindo-lhe permanecer no seu espaço natural, e penalizando a vítima, obrigando-a a abandonar os seus pertences e a refugiar-se num espaço desconhecido.
Pelo contrário, se a vítima voltou para casa porque quis, quis e quis muito bem, pois nada fez de errado para sair - a agressora é quem tem de ser efectivamente afastada, encaminhada para serviços competentes que determinem se a violência resulta de doença psíquica ou de deformação moral, e as medidas de coacção definidas em função do apurado. Compete ao Estado garantir que tal acontece. Mesmo num cenário em que a vítima se prontifica a cuidar da agressora e a chamada para a polícia tenha resultado de uma aflição passageira. A violência doméstica é crime público e as boas intenções fazem vítimas, não há que facilitar numa situação onde o receio ou a ameaça* imperou.
Onde estão os Planos de Contingência do Ministério da Justiça? Em situação normal, o Estatuto de Vítima e a forma como com ele se lida carecem de revisão profunda - mais se impõem os ajustes em tempos de confinamento.
E é nestas pequenas coisas que percebemos a inércia dos nossos deputados, a inépcia das nossas forças judiciais e de segurança nas abordagens aos indivíduos, a irrelevância de tantas entidades e associações de apoio humanitário actuando desarticuladas.
Mas esta abordagem é, apenas, uma nota de rodapé na história da violência doméstica em Portugal.
* Há quem, lidando com familiares violentos por doença ou dependência, recorra à polícia como forma de tentar incutir-lhes temor pelas consequências dos seus actos, isto sem que tenha real intenção de os ver detidos e julgados. Mais uma vez, as boas intenções fazem vítimas e cabe ao Estado não o permitir - a violência doméstica é crime público também para evitar tais benevolências.
imagem: "Mulher batendo num homem com vassoura" (autor desc., pintura de Kalighat, 1875), domínio público.
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