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[Resposta à carta original do Desafio de escrita dos Pássaros #8 Carta ao meu passado]
Resposta da criança à mulher
Olá, mulher eu grande.
Sonhei que me escreveste, mas hoje a tua carta estava aqui. Se calhar sou sonâmbula como o Primo Mais Novo, mas acho que a dormir não ia ao dicionário ver como se escrevem as palavras grandes, por isso acho que foi a Mãe que a escreveu a fingir que eras tu. Ou eu, não é?
Ainda bem que não sei como vou ser, podia estragar tudo. Como quando os pais diziam que se não bebesse leite não crescia, mas eu não bebi e sou a mais alta da escola da manhã.
Sabes, mulher eu grande, acho que as crianças não crescem mais porque os adultos não deixam. A J. é muito pequenina e dizem-lhe para comer o pão todo, mas ela não consegue e obrigam-na. Depois ela vomita tudo! Não se pode crescer se se vomitar quando se come, pois não?
Os adultos às vezes não sabem mesmo o que estão a fazer... A mãe da M. está grávida, e disseram-lhe que guarda comida na barriga para fazer leite para o bebé que a cegonha vai trazer… Ainda se fosse andorinha ou pisco, que há cá muitos, mas cegonhas só há no Alentejo, não sei como é que a M. acreditou! Eu disse-lhe que o bebé já estava na barriga e que era como os girinos e depois é que surgem os braços e as pernas, ela não acreditou e eu ia mostrar-lhe a enciclopédia, sabes, a que os pais compraram quando a Prima ficou grávida?, mas a Mãe disse que não porque os pais da M. podiam não gostar. Mas se somos animais com maminhas e se é assim que os bebés aparecem, porque os adultos não explicam e ainda mentem? E depois dizem que mentir é feio! Vês?
E outra coisa, os meninos da escola não acreditam que somos animais! Andam numa escola onde aprendem que Adão e Eva são avós deles... Eu nem lhes falo dos macacos, o Primo Mais Velho disse que eles não iam gostar de saber. Não percebo porquê, mas sei que às vezes os garotos querem bater em quem diz coisas diferentes e não me apetece andar à bulha por causa disso… Mas ando por outras coisas. Lembras-te, quando o L.R. estava a ameaçar bater no R. e eu lhe disse para bater em alguém do tamanho dele para a luta ser igual e ele empurrou o R. e eu o atirei ao chão? Já aconteceu mais vezes, e a Mãe disse que não devo lutar. Mas não posso deixar que os maiores batam nos mais pequenos, pois não? É injusto, e acho que devemos defender os mais fracos, como faz o Lingue Chungue.
Olha, já acabei de ler o “Nanu, o menino que estudava num livro de pedra”! É tão bonito! Dantes não tinham papel para escrever porque ainda não tinha sido inventado, mas escreviam nas paredes das grutas e nas pedras e depois nas peles e nas folhas das plantas… não sei como será quando eu for tu, mas espero que consigas ler esta carta.
Beijinhos e não te esqueças de mim.
Referências
Primo Mais Novo, Primo Mais Velho, Prima - postal 1 de Agosto de 1979
Lingue Chungue, na verdade Lin Chung ou Lin Chong - Herói da ficção chinesa trazido para Portugal numa série japonesa na década de ´70. Pedro Boucherie Mendes fala nisso aqui.
Nanu, o menino que estudava num livro de pedra - livro de contos de Garcia Barreto, o primeiro conto a história de um menino pré-histórico que estudava num livro de pedra. Foi um dos primeiros livros sem imagens que li - e demorou-me alguns dias porque o meu pai o comprou em tempo de aulas... em tempo de aulas o meu tempo de leitura acabava às (então ainda se dizia) 10 da noite (até me ter lembrado de usar as lanternas do campismo debaixo dos cobertores, mas isso foi só na 2ª Classe).
Fotografia - não me lembro do nome do fotógrafo, vinha de longe, mas a fotografia, da qual retirei uma ampliação, ainda tem o número 61. Havia muitas crianças, mas não na minha escola, éramos só 44.
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