Saltar para: Posts [1], Pesquisa e Arquivos [2]


nem sempre o verso

por Sarin, em 21.03.20

Hoje é o Dia da Poesia 

e não me apetece o verso.

Tenho desfeito o peito,

sem rima mas com reverso

e o verbo foge

triste

porque todos os dias

são dias de poesia

mas nem todas as noites

adormecem no poema.

[Cuidemos de todos cuidando de nós: Etiqueta respiratória. Higiene. Distância física. Calma. Senso. Civismo.]
[há dias de muita inspiração. outros que não. nada como espreitar também os postais anteriores]

Autoria e outros dados (tags, etc)

lançado às 21:10

1 de Agosto de 1979

por Sarin, em 01.08.19

Bem cedo, despedi-me da então apenas-minha Tia, do meu Tio, do meu Primo Mais Velho e do meu Primo Mais Novo, e entrei no carro.

Não me lembro do que lhes disse, provavelmente terei perguntado se não podiam vir connosco, parece que perguntava muitas vezes. E o meu Primo Mais Velho, mais velho que eu onze anos e meio, terá talvez brincado como lhe era natural, "Traz-me um copo de neve" ou algo assim.

Não esperava ver a minha Prima naquele dia - vivia um pouco mais longe com o Marido e o meu Priminho, bebé de dezanove meses. Mas ela ali estava, à entrada da casa da  minha Tia sua mãe. Tinha andado no ar a ideia do passeio conjunto, e quando a vi pensei que, talvez...

Quase gritadas da porta, soltei as palavras "Vêm connosco? Entra, cabes entre mim e a Avó!" e a minha Prima respondeu "Não posso, querida, o teu Priminho está doente; e o meu Marido não está aqui" "Ele vem depois, de mota", respondi entusiasmada com a de novo possibilidade. Sorriu, os olhos preocupados abraçando o meu Priminho agitado pela febre, e respondeu "Faz boa viagem, e até segunda."

Ela ficou onde estava; sairia horas mais tarde com o meu Primo Mais Velho, o irmão mais novo dois anos que a levaria ao médico enquanto o marido trabalhava. E eu segui no carro que arrancou, sentada entre a minha Mãe e a nossa Avó.

 

Haveria de regressar não na segunda-feira mas nessa mesma madrugada. Numa viagem cheia de sobressaltos e quase-acidentes provocados pelas lágrimas que, escondidas, toldavam os olhos de todos menos do Avô, desconhecedor do porquê de termos regressado mal havíamos chegado, as tendas deixadas para que o compadre, o meu outro Avô, o paterno, as trouxesse depois.

Recordo os pirilampos do carro da polícia que passou por nós, por este meu Avô que me levava pela mão dos meus 7 anos ao bar do campismo de Manteigas, e de despreocupada ter dito "Alguém se portou mal...". Lembro-nos ambos intrigados ao vermos as luzes brilharem paradas ao lado dos nossos carros - que, saberia muito depois, as patrulhas haviam procurado toda a tarde pelas estradas e parques da Serra. Lembro como quase corremos e chegámos a tempo de ver os guardas desviarem-se com os meus pais, de ver como estes se abraçaram e, pouco depois e sozinhos, se refugiaram num passeio até à  sombra dos penedos e do anoitecer. A GNR abandonou o espaço e os meus pais também, abraçados e mudos ao nosso espanto ainda distante, a Avó e o Avô maternos desaparecidos, talvez a tratar do jantar, e por isso tão ignorantes como nós. Mudos continuámos o meu Avô e eu, aguardando.

Quando os meus Pais regressaram do que me pareceu uma longa ausência, a angústia saiu-me sob pergunta "Vamos ser presos?" "Não, querida, os senhores vieram avisar-nos de que a Tia está doente e temos de voltar".

Recordo a preocupação e a tristeza que nos acompanharam, o Avô e eu acreditando que a Filha Mais Velha, a Tia, estava doente. A meio da viagem descobri uma ponta da verdade, solta num gemido involuntário da Avó que me abraçava; ponta que puxei até obter verdade suficiente para me esclarecer as ideias e escurecer os olhos não mais secos por dias. Ao Avô só seria revelada à entrada do Hospital de Leiria... Recordo o grito que, ferido, desferiu na madrugada e ouço ainda o baque do seu corpo abatido não sei onde ou como,  revejo as batas brancas em correria, a espera, as lágrimas enfim soltas e a minha pergunta contínua, redonda, rotunda no peito afinal de todos "Mas... é mesmo verdade?"

Recordo a chegada a casa, às casas onde não entrámos porque ficámos metros ao lado, na da Tia, desde o início da tarde cheia de familiares e amigos e vizinhos - lembro os sussurros gemidos, o sufoco, o vómito que me acometeu quando percebi ser verdade, ser mesmo verdade. A Tia desmaiava a cada 5 minutos, o Primo Mais Novo, mais velho que eu, chorava abraçado a si mesmo, o Tio esmurrava paredes na rua, e todos os outros pareciam marionetas movendo-se longe naquela casa apinhada de gente e de torpor e de estupor magoado... lembro o frio e os cobertores em pleno Agosto, recordo a viola pousada num canto, sem canto sem notas sem som - talvez o único objecto em silêncio naqueles dias.

Não recordo mais nada dessa noite em que ninguém dormiu, ou se dormiu foi a fingir - só as lágrimas e os gemidos e a opressão de perceber que a tristeza que nos unia também me isolava, presa na pergunta "Porquê?" que toda a noite durante muitas noites zuniu na minha cabeça.

Às 9 da manhã amigos levaram-me para casa de uma amiga da minha idade. Fui contrariada; queria estar com a família, era ali o meu lugar. Mas não, não podia ficar, disseram-me, o ambiente não era bom para ninguém e muito menos "para uma menina de sete anos". O Primo Mais Novo ficou - já tinha onze.

Envelheci muitos anos naquelas horas, criança com uma dor adulta e madura renovada em cada morto que desde então chorei, um luto nunca totalmente feito apesar do Tempo, a pesar no tempo e em todos os lutos que fiz depois.

E o Primo Mais Novo passou a ser O Primo. Os outros, na volta do médico, ficaram na curva do caminho.

 

[Cuidemos de todos cuidando de nós: Etiqueta respiratória. Higiene. Distância física. Calma. Senso. Civismo.]
[há dias de muita inspiração. outros que não. nada como espreitar também os postais anteriores]

Autoria e outros dados (tags, etc)

lançado às 07:00

Linha do Oeste

por Sarin, em 05.07.19

C0307D43-E340-4348-9995-9B3D9B63B48B.jpeg

Em criança tinha aulas paredes meias com a linha do Oeste, separada da escola por um muro e um passeio mais largo do lado de lá.

Na linha passavam comboios de cargas à vista, tantas carregadas ali, passavam comboios de segredos fechados nos vagões de madeira - que só mais tarde percebi parecidos a outros vagões de má história, os imaginados segredos assim perdidos de cor e sabor sem qualquer culpa.

Passavam comboios de gente de olhos invernados buscando as águas das Termas Reais, talvez em busca de uma D. Leonor que as não bebeu, gentes que no Verão se queriam nas praias, qualquer praia deste Oeste de frias águas e quentes areais entre a Figueira e Peniche e mais além, Lisboa adentro... Passavam comboios de gente que vivia entre estações e apeadeiros, comboios de gente que tratava o revisor como vizinho, comboios de gente.

Uma vez ou outra descia do comboio um viajante vagamundo perdido que, invariavelmente, acabava a comer sopa no restaurante da minha Tia ("um prato de sopa e um pão com azeitonas nunca se negam a ninguém, sobrinha"). Pagavam com histórias, com lágrimas se despediam e subiam a estrada, apanhavam o comboio que os levaria a outras paragens a outras sopas. Desses, houve quem voltasse passados anos num comboio mais trôpego e com uma história mais sombria - mas com uma flor para a minha tia. E uma moeda para a segunda sopa, que andar à boleia dos vagões de carga era distinto de pedir comida - nas gentes que usavam os comboios havia-os com estas dignidades.

Enfim, passavam os comboios e interrompiam as aulas, interrompiam o trânsito, interrompiam a concentração e, aos mais novos, até o sono.

E quem não ia no comboio seguia o som com a imaginação, e a professora sabia que não valia a pena acordar o momento, este passaria por si e voltaria.

E também eu cheguei a seguir no comboio, às praias, às compras, pelo passeio naquele pouca-terra que a linha do Oeste me permitia entre as Caldas e a Figueira, que a Lisboa chegava-se mais depressa de carro mesmo que apenas vinte quilómetros fossem auto-estrada.

 

Sei que agora os comboios quase não passam, e quando passam continua a chegar-se a Lisboa e a voltar-se no tempo de um pouca-terra que já nem canta... Os comboios quase não passam, a escola ainda com cantarias mas sem livros sem sonhos sem alunos. E os vagões já não dão boleia a ninguém, e já não tenho tia para dar um prato de sopa a viajantes perdidos.

 

Viajar de comboio pelo Oeste, viajar de comboio por Portugal, é quase, e apenas, uma viagem pela memória.

 

imagem da Cister FM

[Cuidemos de todos cuidando de nós: Etiqueta respiratória. Higiene. Distância física. Calma. Senso. Civismo.]
[há dias de muita inspiração. outros que não. nada como espreitar também os postais anteriores]

Autoria e outros dados (tags, etc)

lançado às 18:33

Barquito de papel

por Sarin, em 24.04.19

ilustracao-de-verao-e-objeto-de-praia_53876-20295.

Já escrevi e apaguei várias frases introdutórias... como falar com aqueles que têm visitado o blogue e não me encontram, e ainda assim voltam? Como agradecer esse voto de confiança, essa manifestação de interesse?

Tive saudades. Ou talvez tenha sofrido a ausência, tantas foram as ânsias de navegar o blogosfério e tão fortes senti as correntes de escrita... Cheguei mesmo a ponderar a revolta: pedir que me lessem o que por aí se escrevia, que escrevessem o que eu alinhava. Mas... há uma intimidade natural entre os meus dedos e o teclado, entre os meus olhos e o texto - e preferi a escuridão à semi-luz lançada por terceiros. Esta é uma relação só nossa, minha - mesmo que o corpo me falhe por vezes. Não troco.

Sei que andarei um pouco à deriva, as palavras entarameladas nos dedos e as ideias enrodilhadas no tanto que aconteceu entretanto... não sei se conseguirei escrever postais sobre o mundo que ardeu em Paris, o deus que morreu entre a Nova Zelândia e o Sri Lanka, a esperança que teima em não morrer em Moçambique, o inferno que vai deflagrando em quase todas as esquinas tendo como combustível qualquer coisa como comburente a intolerância-idiotia-prepotência nós as cinzas. A seu tempo abrirei algumas destas feridas, mas não agora. Agora vou tentar lançar o barco e deixar as ideias vogar a maré e a espuma.

A quem me continua a acompanhar, obrigada.

[Cuidemos de todos cuidando de nós: Etiqueta respiratória. Higiene. Distância física. Calma. Senso. Civismo.]
[há dias de muita inspiração. outros que não. nada como espreitar também os postais anteriores]

Autoria e outros dados (tags, etc)

lançado às 09:39

O Facebook é um mundo. Um mundo reflexo deste mundo onde vivemos, mas um mundo onde a maioria vive do outro lado do espelho, como se no conto de Lewis Carrol.

 

Aderi ao Facebook devido a solicitações várias de amigos e familiares distantes. Nunca apreciei o modelo - não pelo modelo em si mas pela permissividade latente que lhe permitiria tornar-se aquilo que se tornou: um invasor quotidiano.

 

Andei por lá 3 anos mal medidos, e se me chateavam os códigos sociais seguidos pela maioria (a obrigação de responder, de aceitar, de gostar!) mais me chateava a invasão de privacidade - e portanto quase tudo que publicava ficava visível para um grupo muito restrito de conhecidos. Que teve que ser alargado porque, enfim, velhos conhecidos de escola, primos afastados, depois os irmãos dos primeiros e quando dei por mim, de uns saudáveis 50 amigos de interacção facebookiana descobri-me com mais de 1200 "amigos" com quem havia trocado meia-dúzia de palavras na vida fora-do-facebook.

 

Fechei a conta.

 

Não me valeu de nada, porque descobri - fui alertada, na realidade! -  que o Facebook teve umas actualizações quaisquer e eis-me de volta sem o saber; mas esse é outro assunto.

 

Neste 10 de Junho, que é o Dia de Portugal e das Comunidades e da Língua Portuguesa, o que me interessa é recordar os amigos portugueses que, alguns já então e outros agora espalhados pelo mundo, encontrei e reencontrei durante aquela minha breve passagem pelo Facebook.

E para quem escrevi na altura este poema.

Onde estiverem, um beijo abraçado no poema que de novo envio ao vosso enontro até que nos voltemos a encontrar. 

 

AMIGO, OU A DEFINIÇÃO MAIS CARA


“Amigo”
não é a pessoa com quem falamos
ou bebemos uns copos
e até rimos às vezes…
“amigo”
é quem nos ouve,
quem nos sente
“amigo”
é aquele que voa connosco
mas nunca se esquece do lastro que nos prende à terra,
que nos prende a nós.
“amigo”
é uma pessoa cara numa palavra vendida ao desbarato

[Cuidemos de todos cuidando de nós: Etiqueta respiratória. Higiene. Distância física. Calma. Senso. Civismo.]
[há dias de muita inspiração. outros que não. nada como espreitar também os postais anteriores]

Autoria e outros dados (tags, etc)

lançado às 19:21

Era para falar sobre respeito

por Sarin, em 13.05.18

Abri a folha para escrever sobre um tema controverso - a eutanásia - e dei por mim a pensar nas amizades que fazemos e desfazemos ao longo dos dias.

Naquelas amizades que resistem à distância e se fortalecem ainda assim, como se cada sorriso comum fosse uma caixa inteira de vitaminas, cada mágoa partilhada fosse um frasco de óleo de fígado de bacalhau.

Há também as amizades que resistem à distância mas que se vão desenlaçando até viverem apenas de memórias. Ou talvez sobrevivam, em comum o passado e uns olás ocasionais que ainda transportam sorrisos, as lágrimas já não.

Li algures, ou talvez tenha ouvido num filme, que a partir de uma certa idade somos velhos para criarmos velhos amigos. E percebi que as amizades que se vão desenlaçando são isso, velhos amigos. Que as mantemos porque são a memória do nós que fomos, são quem conta as histórias que os novos amigos só conhecem das nossas palavras.

Ainda assim, prefiro as amizades que se renovam em cada gesto, as amizades com o botox natural de quem se ri connosco e até se ri de nós até nos rirmos também - só as amizades de muitos lifting sabem como nos repuxar a pele sem magoar.

 

Sou a favor da eutanásia. Mas isso fica para outro dia, que hoje é Domingo e vou aproveitar para telefonar às velhas amizades.

[Cuidemos de todos cuidando de nós: Etiqueta respiratória. Higiene. Distância física. Calma. Senso. Civismo.]
[há dias de muita inspiração. outros que não. nada como espreitar também os postais anteriores]

Autoria e outros dados (tags, etc)

lançado às 20:35

Onde ideias-desabafos podem nascer e morrer. Ou apenas ganhar bolor.


Obrigada por estar aqui.




logo.jpg




e uma viagem diferente



Localizar no burgo

  Pesquisar no Blog



Subscrever por e-mail

A subscrição é anónima e gera, no máximo, um e-mail por dia.

Cave do Tombo

  1. 2021
  2. J
  3. F
  4. M
  5. A
  6. M
  7. J
  8. J
  9. A
  10. S
  11. O
  12. N
  13. D
  14. 2020
  15. J
  16. F
  17. M
  18. A
  19. M
  20. J
  21. J
  22. A
  23. S
  24. O
  25. N
  26. D
  27. 2019
  28. J
  29. F
  30. M
  31. A
  32. M
  33. J
  34. J
  35. A
  36. S
  37. O
  38. N
  39. D
  40. 2018
  41. J
  42. F
  43. M
  44. A
  45. M
  46. J
  47. J
  48. A
  49. S
  50. O
  51. N
  52. D