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O lugar na História

ou As armas dos barões assim ralados

por Sarin, em 11.02.21

Mural no Centro Histórico de Lisboa

Mural de Casa de Fado no Centro Histórico de Lisboa
imagem recolhida no BestGuide

 

Um dos meus postais de ontem no sardinhaSemlata, O Portugal que somos, recebeu um comentário que, focando-se num ponto abordado, me recordou várias polémicas ainda recentes, entre elas a vandalização da estátua do Padre António Vieira e o projecto para eliminar os brasões da Praça do Império. Ao escrever a resposta, entendi merecer esta mais luz do que lhe caberia em sorte se numa caixinha de comentários.

Com um abraço ao José Silva da Costa (também conhecido por Cheia), que o deixou, transcrevo a frase que deu ensejo a este postal.

Não será  arrasando símbolos, nem reescrevendo a História, que conseguiremos corrigir o que está errado.

Infante D. Henrique na Conquista de Ceuta (pintura em azulejo)

Infante D. Henrique na conquista de Ceuta (pintura sobre azulejo, Séc. XVI)
imagem recolhida no Comunidade Cultura e Arte

A História tem de ser escrita, discutida e reaprendida, pois que mal apreendida e, por isso, mal aprendida. Porque reinventada foi ela durante muitos anos, e tão reescrita foi que quase apagaram da nossa história multicultural os não cristãos e os não brancos, reservando-lhes um papel quase marginal e nada abonatório. Salazar inventou o sermos de brandos costumes para nos manter sossegados, a nós, que tivemos um Rei, um Príncipe Herdeiro e um Presidente da República assassinados só no primeiro quartel do Séc. XX, a nós, que nascemos pela mão de um jovem que se insurgiu contra a mãe. Tanto o acreditaram que ainda o acreditamos, basta ver como se defendem e difundem os pátrios méritos nos Descobrimentos, esse momento simultaneamente glorioso da nossa ciência e decadente da nossa civilização. Nem falo do revivalismo que anima alguns nacionalistas impados de purismo pela raça lusa - a que pertencerão exclusivamente os nados e criados entre Douro e Tejo, o que exclui um orgulhoso nacionalista como Diogo Pacheco de Amorim mas, curiosamente, inclui os cavalos de Alter, que nisto de purismos há que o ser por inteiro.

Neste escrutinar da História há que ouvir, ligar, analisar todos os ângulos e todos os registos e todas as memórias, cientes de que a sentirá pessoal quem a viveu ou lhe sente as dores. Mas escrutinar não tem de ser julgar, não pode ser julgar o que aconteceu. Os valores, as leis, a moral e os costumes são distintos dos de então - as sociedades não são já as mesmas, qual o sentido de julgar as de antanho?

É nesta pergunta que, aparentemente, esbarra aquilo a que chamam Politicamente Correcto. Porque se julgar de nada serve, pedir desculpa ajuda a descerrar e, também, a encerrar o luto, a deixar em paz o passado, a fazer as pazes com a História.

E depois há os símbolos. Os símbolos, essas representações identitárias que os viventes consideram imutáveis e que dependem, afinal, das sociedades. Como o bezerro de oiro, são substituídos e abandonados numa mesma geração ou podem sobreviver a várias. Quantas bandeiras não teve já Portugal? Não, os símbolos não traduzem a História, traduzem momentos - e são moldados conforme outros momentos.
Por mim, não destruiria. Enquadraria. Explicaria.
Mas percebo os que se queixam da dor que o símbolo provoca, melhor os percebo quando o símbolo  representa, e eternamente evoca, injustiças então socialmente aceites e ainda não sanadas.
Tomemos como exemplo a Ponte 25 de Abril, originalmente nomeada Ponte Salazar. Se percebemos que manter-lhe o nome seria reavivar a dor de quem sofreu às mãos da Ditadura, como não perceberemos a dor que judeus ou ciganos possam sentir por séculos de sonegação da cidadania, como não perceberemos a revolta dos descendentes de escravos perante símbolos que enaltecem e evocam a dor dos seus ancestrais?
 
Sempre nos disseram pertencer a História aos vencedores, e daí talvez tantos se desgostarem do que agora vêem. Porque assistimos à revolta daqueles que nos habituámos a considerar vencidos, e estranhamos a mudança de algo que nos era normal. E que nada teria de mal - até percebermos o mal que pode ter.
 
Não peço desculpa pelo passado, mas exijo-as a quem me representa.
E não peço desculpa pelo aplauso perante o reclamar do lugar na História, apenas lamento só agora.
Que a História nos seja de quem a viveu. Que nela consigamos alicerçar sociedades maduras.
 
 
 
Nota 1: reparo, abisonhada, que ambas as polémicas exemplificadas se referem a Lisboa. Não haverá semelhantes manifestações noutras zonas do país? E ser-nos-á, afinal, tão importante o que se passa na capital, sublinhando assim o estribilho de sermos paisagem?
 
Nota 2: Caso haja interesse na minha opinião sobre a invocada polémica dos brasões, fica a ligação ao meu tardio comentário no postal do Filipe Vaz Correia, caríssimo amigo e almirante da sardinhada.
 
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lançado às 21:13

O descrédito da política

por Sarin, em 16.11.20

 

Séance d'ouverture de l'assemblée des États généraux, 5 mai 1789."O descrédito da política é consequência dos actos dos políticos"

 

Actos por vezes abusivos e/ou opacos, por vezes mal percebidos [por mal comunicados].

Que acontecem por terem os políticos ficado por sua conta, quase sem escrutínio, sem exigência, sem orientação dos cidadãos.

Estes desinteressaram-se por cansaço com a sua própria vida [falta sempre lazer no início do trabalho, sobra sempre mês no fim do salário], por desconhecimento da gestão  pública [onde, a formação cívica e política na escola? onde, a acção formativa do poder local?], por excesso de viés na informação [cansados, só a política-espectáculo os atrai; e, sem dinheiro para mandar vir o jantar pronto-a-comer, sempre podem mandar vir a opinião pronta-a-engolir, que arrotarão aos poucos no café e no trabalho].

Os órgãos de comunicação social informam pouco e enformam muito, a isenção vendida à necessidade de pagar salários, a certeza de a investigação não se pagar com likes.

Não, o descrédito da política não é apenas responsabilidade dos maus políticos.

 

E não é coincidência que os grupos económicos invistam nos órgãos de comunicação social ainda que os cidadãos não comprem informação.

 

[na imagem, pintura de Auguste Coder sobre a última Assembleia dos Estados Gerais, na qual o terceiro estado, o povo, daria início à Revolução Francesa (1839, óleo sobre tela. Domínio público. Fonte: Wikipédia)]

 

 

 

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lançado às 08:05

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A meritocracia é a melhor forma de progressão. Nos estudos, na profissão, na opinião pública.

Claro que a noção de mérito é muito variável e, até, incompreensível - basta olhar os quadros de honra das escolas e os quadros de honra das estações televisivas, vulgo audiências.

A posição nas listas de classificação parece ser a medida de valor mais usada em Portugal - mesmo, ou principalmente, quando não se conhecem os critérios de avaliação, porque o que interessa é a posição no sagrado ranking. Mas desvio-me da minha questão, não quero falar da perversão* dos rankings e sim da meritocracia.

Estou em crer que apenas os apologistas do compadrio serão contra um sistema que avalie as capacidades e competências de cada um e que premeie os mais competentes, os mais capazes.

Mas a meritocracia tem um grave problema, que fere mortalmente o desígnio de a cada um conforme as suas capacidades: nem todos têm as mesmas oportunidades para desenvolver e apresentar as suas capacidades.

Um aluno bem alimentado numa casa confortável tem condições de estudo e de desenvolvimento muito diferentes das de um aluno numa casa húmida e gelada no Inverno e muito quente no Verão, onde a alimentação pouco varia pois, mais do que obedecer à roda dos alimentos, interessa conseguir ter o que comer todos os dias. Falo do conforto térmico da casa e da diversidade alimentar mas poderia falar da privacidade e da diversidade de oferta cultural, do conforto sonoro e da diversidade das actividades extra-curriculares; falo, na verdade, de tudo isto e do seu reverso, o nada disto.

Talvez que uns pais tenham trabalhado mais do que outros para agora poderem oferecer melhores condições? Talvez sim. Mas pode muito bem acontecer que talvez não, que, apenas, também eles tenham sido criados em casas semelhantes e não tenham conseguido trabalho suficiente.

A criança excepcional que, apesar da casa fria e da alimentação monótona e de tudo o mais que lhe é menos, consegue singrar nos estudos e ser a melhor das melhores é isso mesmo, excepcional. Pelas suas capacidade e determinação, muito acima da média, e pela frequência com que tal acontece.

Das duas, uma: ou apenas consideramos meritórios os esforços da criança que sai da tal casa fria e chega ao quadro de honra, ou teremos de aceitar que a corrida para o mérito arranca viciada logo na partida.

Esqueçamos de onde partiu, essa etapa vencida, e avancemos do quadro de honra para a profissão, pois mesmo que uma pessoa seja muito mais (ou muito menos) do que a sua profissão, se sem outros rendimentos será desta que se alimentará.

Temos a criança já adulta e com estudos concluídos com notas brilhantes, e é hora de a acompanhar no mercado de trabalho. Uma mulher numa empresa privada dificilmente ocupa cargos cimeiros antes dos 40-45. Não será por falta de mérito, até porque é mérito adicional trabalhar com dores e humores menstruais; e ainda mais meritório é trabalhar com o centro de gravidade a deslocar-se a cada dia, com o desconforto do volume e do peso nas pernas na bexiga nas mamas, e as dores e a sensibilidade e a emoção e os enjoos... mas é este um tipo de mérito que atrasa a progressão de uma mulher na profissão*. Este e outros, mais comezinhos mas felizmente cada vez menos frequentes. Já na administração pública torna-se mais fácil, os concursos nacionais não olham ao género. E há as quotas, aquele mecanismo de discriminação positiva sem o qual os homens que decidem continuariam a decidir-se maioritariamente por homens. Não por terem mais competências, mas por não terem os méritos errados.

Peguemos agora no homem saído do quadro de honra, e coloquemo-lo numa sala de futuros empregadores, todos nos seus fatos e charutos, incluindo os homens da sua turma que não saíram do quadro de honra. Todos nos seus fatos excepto ele, que nunca ligou ao que vestia desde que andasse limpo e, de preferência, sem publicidade gratuita a marcas cujas peças pagava. Não se encaixa naquela sala, mesmo que tenha a pele certa e não tenha tatuagens nos braços nus nem brinco nas orelhas lavadas. E isso lhe dizem ainda, que a ausência do charuto ainda passa, mas sem fato... e o homem saído do quadro de honra tem de levar o preconceito às compras de um fato talhado com outro mérito.

 

Este é o problema da meritocracia: se as casas de partida e as casas de chegada não são iguais, não se podem comparar os caminhos. Porque não falamos de pequenas discrepâncias mas de profundas diferenças estruturais e, por isso, estruturantes.

Antes de podermos defender um sistema de mérito, temos de garantir que as oportunidades são semelhantes.

Porque pugnamos por direitos e deveres iguais, é esta regra constitucional que todos os cidadãos desejamos ver cumprida. Mas a sociedade e a lei não marcham no mesmo compasso, a questão do mérito disso sendo prova.

Será ou ingenuidade ou imbecilidade, supor que se pode falar de deveres sem falar de direitos. A inversa não é verdadeira - o adulto a quem hoje exigem os deveres pode ser a mesma criança a quem ontem não garantiram os direitos.

 

 

* há mais perversões. há mais rankings. há muitos critérios.

** artigo de 2019. nada mudou.

imagem: pormenor da escultura em bronze Self made man, de Bobbie Carlyle

 

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lançado às 12:30

Da irresponsabilidade

e da pressa - na notícia ou na fama ou sei lá

por Sarin, em 18.06.20

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"Uma boa forma poderia ser de obrigar a fazer o teste covid a todos os turistas que entram. Uma zaragatoa. Eu sei que é complicado, envolve procedimentos, enfim, que é um bocadinho, que são agressivos. Não sei se em termos legais se pode exigir isso, mas alguns países fazem isso, por exemplo a Nova Zelândia faz isso."

Indivíduo da foto, não identificado, em entrevista para a reportagem da SIC, Primeiro Jornal de hoje, a partir das 13h09min, sensivelmente.

 

Da irresponsabilidade da SIC: não identificar o entrevistado, permitindo que com tal legenda se veja nele o, ou um, representante da Ordem dos Médicos. Não me parece que seja o Bastonário da Ordem nem se assemelha ao Presidente da Ordem dos Médicos do Sul (sic) [com um enorme *], pelo que me pergunto de onde surgiu a informação que motivou tal legenda. Pergunto-me, porque os jornalistas não responderam.

 

Da irresponsabilidade do entrevistado: sendo alguém com alegadas responsabilidades médicas, propõe publicamente uma medida cuja legalidade desconhece e, até, questiona. Chama-se improviso, e medidas improvisadas são tão boa ideia como festas em dias de covid.

 

Não sei o que pensaram estar a fazer, jornalistas, legendador e entrevistado, mas o que fizeram resultou em desinformação.

Porque, se não for legal, o público reclamará da lei sem se preocupar em perceber a razão da sua existência, exigirá medidas como "nos alguns países [que] fazem isso", não interessando que esses países tenham ordenamentos jurídicos distintos.

Porque, se não for a posição da Ordem dos Médicos, a ideia terá passado como validada pelos técnicos e de nada adiantarão comunicados e desmentidos.

 

Adenda às 23h25min: o asterisco.

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lançado às 14:25

Esclarecimento: Human Lives Matters

por Sarin, em 10.06.20

 

O mote Black Lives Matters foi o mais largamente usado nas manifestações que ocorreram nos últimos dias.

No meu postal Manifestações e confinamento III, enquadrado numa sequência de 3 em que analisei manifestações, racismo e confinamento, parti de Black Lives Matters para, em poucas palavras, chegar a Human Lives Matters.

Num comentário, foi-me apontado que estaria a relativizar a importância da mensagem e do movimento Black Lives Matters e, pelo que percebi, a ecoar um mote usado como contraponto às reivindicações deste movimento.

Mortifica-me tal interpretação, agonia-me ser associada a tal tentativa! 

Esclareço que não recordo alguma vez ter ouvido ou lido tal frase, e se ouvi ou li não me apercebi do seu contexto nem retive o seu conteúdo. Jamais serviria de caixa de ressonância para mensagens que combato.

Por saber que, depois de emitida, a mensagem está sujeita à interpretação de quem a recebe, e porque o assunto me é demasiado sério e demasiado caro para permitir subjectividades ou relativismos, esclareço o objectivo do postal e a minha posição:

 

É-me lógico que tais cartazes sejam empunhados em qualquer país onde o racismo cerceie os direitos e as liberdades de qualquer indivíduo por causa da cor da pele, sua ou de ascendentes. É-me lógico que sejam empunhados por indivíduos negros que sofrem na pele o racismo e que sejam empunhados por indivíduos brancos que não sofrem racismo mas que se indignam revoltam agoniam com o racismo que vêem os negros sofrer.

Mas Eu, branca, nada e criada num país onde o racismo não tem contornos definidos, vivendo neste país e vendo o racismo claramente assumido por dois partidos, um dos quais com assento no Parlamento, não sinto legitimidade para empunhar tal cartaz e não sinto justiça ao empunhar tal cartaz. E não sinto porque nunca sofri racismo mas vejo racismo de muitas cores, aqui, no meu país: brancos contra negros de várias etnias e contra brancos ciganos, negros contra negros de outras etnias e contra brancos de várias etnias, ciganos contra brancos de outras etnias e contra negros de várias etnias.

Sem qualquer rebuço mas com muita garra, ergueria bem alto um Black Lives Matters numa manifestação de pesar pela morte de Floyd e de outros negros vítimas de violência sancionada pelo estado ou pela sociedade. Mas estas manifestações de dia 6, embora desencadeadas pela morte de Floyd, não foram uma homenagem: foram manifestações contra o racismo, contra a violência policial, contra as desigualdades sociais.

Não desvalorizo a mensagem Black Lives Matters, tão legítima e tão importante. Mas em actos de luta contra o racismo tenho, em consciência, de me colocar ao lado de todas as vítimas do racismo do meu país. Black Lives Matters. Gipsy Lives Matters. Human Lives Matters.

 

Esclareço, justifico e recuso qualquer associação do postal, da sua intenção, da minha visão, a algo menos do que a luta pela abolição do conceito de raças humanas, pela condenação do racismo, pelo reconhecimento intrínseco e universal dos Direitos do Homem conforme declarados pela ONU e assinados e ratificados pelo Estado Português.

 

 

E não, não coloco um White Lives Matters: os direitos dos indivíduos brancos não estão ameaçados por motivos racistas. Xenófobos, talvez, religiosos, idem, mas racistas não. 

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lançado às 15:05

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Este espaço nasceu em 2018. Sem objectivo que não o ter um ID para comentar, não nasceu para ser blogue e eu nunca soube a data em que se transformou. Caso tenham interesse, encontram pormenores sobre esta evolução em coisas cá do burgo, na coluna à direita (ou abaixo, se ao telemóvel) . 

Numa curiosidade arqueológica, resolvi procurar o primeiro texto que pudesse considerar apropriado a um blogue, coisa com cabeça tronco e membros e que não envergonhasse se lido em voz alta no café. Na altura nem sabia ilustrar postais - não me interessava saber, sequer; por isso chamar texto ao tal primeiro postal.

Fui ali à Cave do Tombo e comecei do princípio, que é por onde se deve começar estas coisas. Lidos alguns, nenhum que me envergonhasse num café, devo dizer, resolvi-me a encontrar o momento em que eu me considerei bloguista, alguém que escreve com a consciência de que os temas que aborda e os textos que publica serão lidos por desconhecidos.

Não continuei a pesquisa porque tropecei num texto que colava muito bem num postal que estava a escrever. Um texto que tristemente desenvolvi em torno de um assunto absurdo e quase marginal. Coisa de neófita. Ou talvez, e porque neófita nos blogues mas não no escrever e muito menos no observar a sociedade, coisa de quem atenta em pequenos sinais e os trata com maior relevo do que então merecem.

Resgato-o agora desse seu afinal não tão pequenino absurdo - e não tão pequenino porque preconizador de uma realidade que nos vem confrontando mais rapidamente do que o desinvestimento na educação e na cultura.

Há precisamente dois anos e vinte e cinco dias, escrevi a propósito de uma noticiazinha envolvendo um autarca luso,

Há notícias que me espantam por serem notícia. Não porque conteste o trabalho do jornalista mas porque o facto noticiado é absurdo.

Perante tal, questiono-me: devo contestar, ecoando assim o absurdo e dando-lhe mais um meio de projecção (vale o que vale) ou é melhor simplesmente ignorar e deixar a outros a função de debater (ou apenas abater) tal notícia, tais notícias?

Não sou jornalista, não sou justiceira... mas, caramba, há factos que ofendem a minha sensibilidade e a minha inteligência! Factos que não me espantaria encontrar em algumas terras dos EUA profundo, por exemplo, onde o ensino ministrado em casa aliado a abusos em nome da liberdade de culto podem eternizar resistências várias a outras interpretações que não as instituídas na comunidade. Certamente haverá exemplos destes em África, na América, na Ásia, na Europa e na Oceania, não se pense que acredito ser um exclusivo de alguns norte-americanos do Tio Sam.

O obscurantismo nasce e propaga-se enraizado nas certezas incontestáveis sem qualquer base científica - matéria de fé, de crença, portanto; e não necessariamente relacionada com um credo. E se não discuto as fés de cada um, permito-me questionar a matéria que as suporta. Por outro lado, o obscurantismo alimenta-se do silêncio, da não contestação - e chegada aqui acabo por descobrir a resposta para a minha dúvida inicial.

Suponho que as teorias da conspiração nascem exactamente neste meio-espaço entre o evitar o obscurantismo e o não divulgar toda a informação... como se os seus criadores precisassem desesperadamente de respostas. No fundo, a mesma necessidade que conduziu às várias religiões da Humanidade.

 

E depois, temos em Portugal, um País civilizado, com ensino obrigatório, com acesso não controlado à informação, onde a ciência tem espaço lado a lado com a religião... temos em Portugal, dizia eu, gente que, fazendo tábua rasa da genética e confundindo características somáticas com esta, gente que representa os seus concidadãos e que cria ONG para isto.

A evolução passou-lhes ao lado? Não tiveram aulas de Biologia? Ninguém lhes explicou a diferença entre fenótipo e genótipo e as regras básicas da hereditariedade?! Caramba, estas são perguntas de retórica - o nosso ensino não é assim tão mau!!! 

 

O título do postal era Deixem os nossos bebés em paz... e nos dois últimos parágrafos, muito específicos e debruçados no tema, questiono sarcasticamente os porquês de quem defende teorias que contrariam evidências científicas mais do que estudadas e sustentadas. 

Ainda não investiguei se este autarca se terá entretanto aliado ao Chega. Mas não me admiraria. 

Não, não estou a ser sarcástica: todos conhecemos as manhas do Ventura. Mas já ouviram o João Tilly? Procurem no You Tube. E tomem atenção às falácias a que recorre, às dúvidas que levanta, às respostas que insinua. E atentem no cuidado com que, após a omnipresente acusação "eles escondem" que nunca identifica quem esconde, logo acrescenta "atenção, que eu (ou nós) não tenho dados que me permitam afirmar" o que antes afirmou. Não, a mentira grada não é do agrado desta malta. Levantar dúvida é o seu método, destruir a confiança nas instituições é o seu objectivo.

Ventura continua a ser um oportunista que aproveita o caminho que lhe garanta notoriedade e poder. Mas o Chega já não é só Ventura, há quem trabalhe na sombra promovendo a dúvida nas instituições, nas ciências, nas leis, usando sempre o mesmo discurso: "eles ocultam". E agora eles, os do Chega, procuram financiamento

 

Se tenho medo do Chega? Não. Tenho é medo de que quem ouve os seus argumentos lhes não veja as falácias. Tenho medo de que quem se sente à deriva se enrede nos seus chavões. Tenho medo de que quem vê as instituições falharem acredite nas suas teorias da conspiração. Tenho medo de que quem os aplaude o faça por falta de outra explicação.

E tenho muito medo de que os partidos da nossa democracia não percebam neste oportunismo a consequência da falta de transparência, da falta de entrega à causa e à coisa pública, da falta de respeito pelos eleitores, da falta de investimento nos cidadãos.

 

Imagem: Capa do Charlie Hebdo no 4ª aniversário dos atentados.

Recolhida no Observatório da Imprensa

 

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lançado às 18:31

Manifestações e confinamento II

Postal 2 de uma série de 3, publicados e a publicar hoje

por Sarin, em 08.06.20

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31 anos após as manifestações que terminaram em massacre, as autoridades de Macau e de Hong Kong aproveitaram a boleia da pandemia para proibir as manifestações em memória das Vítimas da Praça Tiananmen.

Entre os que por cá rechaçaram, e bem, esta decisão das autoridades locais (?) chinesas encontro vários dos que vituperaram as comemorações do 25 de Abril na Assembleia da República, o que me parece uma manifesta incoerência - aos chineses deveria ser permitido celebrar a data e as vítimas da repressão da ditadura, aos portugueses deveria ser vedado celebrar a data e quem os retirou da ditadura.

"Parece uma manifesta incoerência", escrevi acima. Parece e é, sendo também uma clara demonstração de que os fins políticos lhes justificam os meios cheios de meios critérios.

Sim, eu sei, na China ainda se vive um regime não democrático que desrespeita os mais básicos Direitos Humanos, Macau e Hong Kong resvalando nessa direcção. Mas... em Portugal não vamos resvalando também, com deputados apresentando propostas racistas na casa da democracia e rádios de referência fazendo fóruns sobre tais propostas? Será a Democracia mais valiosa para quem não a tem do que para quem arrisca perdê-la?

 

Felizmente, a Assembleia da República teve cravos no 25 de Abril. Poucos, como o estado de emergência impunha.

Felizmente, a Praça do Senado (Macau) teve vigília no 4 de Junho. Poucos, mas mais do que o Estado impôs como emergência.

 

imagem recolhida no Visto de Macau, de onde parti à descoberta do Ponto Final

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lançado às 08:35

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