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IMAGEM
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O Campeonato
Quando em 2009 surgiu a Gripe A, Gripe Suína ou, mais famosa, H1N1 *, parte do mundo nem reparou. Continuou a girar e a funcionar como se nada tivesse acontecido, e aparentemente pouco ou nada aconteceu - excepto para os 18 449 mortos e seus familiares.
A OMS decretou-a pandémica **, e muitas vozes ainda hoje dizem ter sido um alarmismo não apenas desproporcionado mas descomunal, absolutamente desnecessário - o que os números pareciam confirmar, porque pandemia, sim, mas aparentemente pouco letal, se comparada com outras. Até porque, e não se percebeu ainda porquê, as zonas mais afectadas foram algumas regiões da América (México, Brasil e Argentina, com cerca de 20 vezes mais casos letais do que o resto do mundo) e sobre África e parte da Ásia não existem dados que permitam qualquer tipo de análise.
Esta pandemia de 2020 e a de 2009 parecem pertencer a campeonatos muito distintos.
O Remate Inicial
Não duvido que, quando o médico Li Wenliang lançou os primeiros alertas sobre a possibilidade de perigo relacionado com o então ainda não identificado coronavírus, as autoridades tenham ostensiva e propositadamente ignorado as suas suspeitas, não com intenção de encobrir e evitar alarme social, mas porque os dados pareceriam vagos e desprezáveis. Estávamos em Dezembro, haveria alguns casos de pneumonia (44 em 3 de Janeiro***), mas nenhuma morte por tal causa, o que numa cidade de 11 milhões de habitantes terá parecido menos que insignificante. E Li Wenliang era, afinal, um oftalmologista.
Se pensarmos que, ainda hoje - mais de 10 anos depois! - a maioria de nós desvaloriza a Gripe A de 2009 - apesar de estudos posteriores terem revelado que o número de mortos talvez tenha estado mais próximo dos 203.000 do que dos 20.300 - não será motivo para espanto terem as autoridades chinesas cumprido o seu dever de comunicação dos casos suspeitos de Síndrome Aguda Respiratória Severa (SARS) à Organização Mundial de Saúde (OMS), enquanto desvalorizavam os alertas internos*** sobre uma eventual epidemia, considerando-os mesmo subversivos da ordem pública. Porquê, então, as acusações e o lançar de culpas à China?
O Cartão Vermelho
Porque é a China. Porque é um país não democrático, de partido único (ainda por cima comunista), sem liberdade de imprensa nem liberdade de expressão e com o poder absolutamente centralizado. Ou seja, simboliza muito daquilo que é abominado no Ocidente (leia-se Europa, EUA e Canadá, que a África e as Américas Central e do Sul quase nunca entram nestes ocidentes). E é uma economia fortíssima que deixou de ser emergente há muito, o que representará para o tal Ocidente um perigo adicional.
O VAR
Objectivamente, a reacção das autoridades chinesas foi desvalorizar um alerta vindo de um não especialista sobre o perigo de uma epidemia desconhecida para a qual não tinha provas, apenas suspeitas. Porquê, então, acusar a China de "Ocultação" - que denuncia intencionalidade, contrariada pela comunicação de suspeita de SARS feita à OMS em Dezembro?
A China demorou 20 dias a perceber, confirmar, assumir, digerir e divulgar a notícia deste vírus desconhecido - que, a 3 de Janeiro tinha 44 casos não letais de infectados e a 20 de Janeiro tinha 278 infectados e 6 mortos. Noto que estamos a 28 de Março e temos um Reino Unido que apenas há uma semana assumiu a gravidade da situação, temos uma Holanda, um México, uns EUA que continuam a agir como se tivessem dúvidas entre ser um H1N1 ou um SARS-CoV-2, temos um Brasil que age como se de um resfriadinho se tratasse... E, mesmo assim, surgem as acusações de "ocultação" e de "irresponsabilidade" - porque entendem os acusadores que, se os alertas de Li Wenliang tivessem desencadeado resposta imediata das autoridades de saúde, o vírus não se teria disseminado ou teria sido atrasado e o mundo teria tido tempo para se preparar...
... só eu é que estou a ver o fora-de-jogo por quilómetros?
O regime chinês é responsável por muitos atropelos à liberdade, e estes não serão alheios ao efeito de bolha a que a informação foi sujeita. Mas a verdadeira culpa da China nesta pandemia é estar do lado errado da barricada política que alguns usam em todas as análises que fazem.
Os Prognósticos
Não, prognósticos dos verdadeiros, dos antes do jogo, poucos arriscam devido aos vários imponderáveis. Basta ver como, em 3 meses, já se alteraram metodologias de previsão, de contagem e de abordagem. Em Portugal como noutros países.
Mas confesso que me maçam os treinadores de bancada que fazem prognósticos depois do jogo. Porque saber o que se deveria ter feito é muito mais fácil do que saber o que se deverá fazer. E há uma enorme diferença entre analisar para perceber e analisar para encontrar culpados. Por isso, ou principalmente por isso, as análises de alguns treinadores de bancada, além de maçarem, enojam, até porque estão a ser intelectualmente desonestos e sabem-no.
O Tempo de Compensação
Claro que existe o reverso da questão: os louvores à eficácia chinesa.
Louvores à forma como, após a declaração de emergência de saúde pública na província de Hubei, os mecanismos de contenção foram agilizados, louvores à quase imediata reconversão industrial para produção de equipamento médico, louvores à capacidade de rastrear as cadeias de transmissão e os infectados... Louvores vindos dos mais variados quadrantes políticos.
O que não deixa de ser fina ironia. Ou uma grande trivela.
Porque esquece-se quem louva que tal eficácia só foi possível por a indústria ser controlada pelo Estado e o cidadão ser controlado pelo Estado. E eu, que concordo com o controlo estatal de sectores fundamentais - sem que a iniciativa privada esteja afastada, mas que o Estado assegure a sua organização e fornecimento - deploro e sou fundamentalmente contra o controlo dos cidadãos na sua vida privada. Portanto, não consigo louvar a eficácia chinesa porque, para mim, os fins não justificam os meios. Nem sequer no controlo da epidemia de COVID19.
A Morte Súbita
Tomei conhecimento de que algumas das formas de controlo usadas pela China, um país anti-democrático, estão a ser também aplicadas em países democráticos, onde a Protecção de Dados tem, ou tinha, grande valor - o que prova que as diferenças residem, apenas e afinal, na dimensão política de cada medo.
Se estranham a analogia com o futebol, pensem que, para muitos observadores, não interessa ver o jogo mas apenas saber quem é o vencedor.
* H1N1 é um sub-tipo de vírus, responsável por várias gripes, entre eles a Gripe A e a Gripe Pneumónica (ou, erradamente, Espanhola), cujas pandemias ocorreram com 90 anos de intervalo.
** O termo pandemia é erradamente associado a grande mortalidade. Na verdade, apenas resume a distribuição geográfica de um agente infeccioso.
*** como ilustração, convido-vos a visitar a imagem interactiva publicada no Financial Times em 26 de Janeiro de 2020, sob o título "Coronavirus makes for dismal lunar year for Wuhan residents". O conteúdo é pago e a imagem tem direitos de autor, o que me levou a solicitar autorização para a usar - atrasando a publicação do postal. Esta foi-me recusada, dado ser política do jornal cobrar pelos direitos dos conteúdos, mas autorizaram-me a ligação desde que com advertência aos leitores sobre ser conteúdo pago. Deixo ainda a informação de que cheguei a tal ilustração (em formato gif) através das imagens do Google, consultando [china wuhan coronavirus ft]
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