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Postal sem pressa

por Sarin, em 02.06.19

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Apetecia-me não escrever nenhum postal hoje - e apenas para não afundar o postal de ontem, como que a deixá-lo em destaque para que quem passa bata com os olhos nele.

Não por vaidade, embora confesse que gosto do resultado, que gosto especialmente dos diapositivos na última ligação.

Mas pela dor: os números doem. As realidades doem. E fazem-se sofrer, mas tantos de nós alheados...

 

Nisto, lembrei-me de números que vamos esquecendo pela voragem de outros números que se impõem ao dia: as vítimas de Kenneth e Idai e os esforços de reconstrução de Moçambique, tão semelhantes nas necessidades e tão distintas nas causas das vítimas dos massacres dos  Tutsi no Ruanda e dos Rohingya no Myanmar, massacres estes separados por quase 25 anos mas com as mesmas motivações, tão semelhantes às que levaram Hitler a construir fornos crematórios ou que fizeram de Masada uma cidade sitiada cujos herdeiros sitiam agora outros...

Todos os dias surgem novas vítimas, lá e cá - porque, embora noutra dimensão, também por cá as temos: vítimas da falta de civismo e das más acessibilidades, vítimas do esquecimento da família e da sociedade, vítimas da vida moderna.

São vítimas distintas, aquelas que lutam pelo direito a viver e aquelas que se confrontam com dificuldades para viver com saúde e autonomia. Mas nunca gostei da frase "Chorei por não ter sapatos até que vi uma criança sem pés": não me nivelo pelos mínimos, e nos meus braços cabem todos os injustiçados. Recordar uns não retira aos outros espaço na memória. Nem me limita as acções, limitadas pela minha insignificância e não pela minha indiferença.

E estas tantas vítimas têm causas distintas, entre a natureza tão alterada pelo homem e os homens alterados por vaidades várias.

"De que adianta falar e falar?", peguntarão...

... falo para que quem me lê ouça.

... falo para que quem me ouve pense.

... falo para que quem pensa não esqueça.

... falo, sobretudo, para que eu não me esqueça.

Não me esqueça de comer produtos locais e da época e evitar, tanto quanto possível, congelados enlatados importados porque mais saudáveis os primeiros, sim, mas também muito menos poluentes.

Não me esqueça de indagar a origem dos produtos e de investigar as marcas, preferindo aqueles e aquelas onde encontro cuidado e responsabilidade social.

Não me esqueça de que os artigos novos são bonitos e brilhantes mas são utilitários e não sinais de poder, que a pegada ambiental e social causada pelos artigos novos de que não preciso pesar-me-ia muito mais do que me pesam já alguns hábitos impostos e adquiridos talvez sem remissão.

Não me esqueça dos pequenos gestos e não me esqueça de que os pequenos gestos são pequenos mas são meus. E que sem eles talvez deixe de dormir bem, deixando de dormir bem deixe de pensar, deixando de pensar me limite a consumir o que me querem vender. Nessa altura serei um arremedo de mim, um remendo de gente que fui. E não serei, não estarei nem para mim nem para elas - as vítimas sobre quem agora escrevo.

 

 

imagem recolhida na rede: carta de tarot

[Cuidemos de todos cuidando de nós: Etiqueta respiratória. Higiene. Distância física. Calma. Senso. Civismo.]
[há dias de muita inspiração. outros que não. nada como espreitar também os postais anteriores]

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lançado às 10:05

Onde ideias-desabafos podem nascer e morrer. Ou apenas ganhar bolor.


Obrigada por estar aqui.



25 comentários

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De MJP a 02.06.2019 às 10:24

Olá, Sarin!
Brilhante reflexão!!!
(Obrigada pela partilha!)
"Curiosamente", hoje, acordei a pensar como estariam os sobreviventes de Moçambique... deixou de ser notícia... cairam no esquecimento...
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De Sarin a 02.06.2019 às 10:34

Olá, MJP, bom dia (com uma aragem mais fresca, desejo) 


Todas as vítimas vão caindo na vala comum das tragédias contínuas, e essa será a nossa maior tragédia, penso eu...


É mesmo curioso, pois estava a pensar como estariam as coisas em Moçambique e, com pouca busca, dei com o artigo do Sapo 24. Oxalá mais gente se lembre e que quem for útil possa agir.
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De MJP a 02.06.2019 às 10:43

Aragem fresca... é coisa que não há por estas bandas!!!... mas... como a minha casa, ainda, está fresquinha... vou manter-me "hibernada na minha toca"!!!


Quanto a Moçambique... na altura da tragédia... voluntariei-me para ajudar, enquanto enfermeira... mas ninguém aceitou a minha disponiblidade (CVP, AMI)... (até estou de licença sem vencimento... o que seria uma "vantagem" ... mas, nem assim...) 
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De Sarin a 02.06.2019 às 22:50

Por vezes não é apenas falta de voluntários, é falta de recursos para os levar ou apoiar no terreno.
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De O ultimo fecha a porta a 02.06.2019 às 12:44

O silêncio e a ignorância é o pior que podemos fazer. Não alteramos nada, mas falamos, debatemos e alguém nos vai ouvir.
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De Sarin a 02.06.2019 às 14:42

Sim, alterar não alteramos; mas se formos muitos o barulho obrigará alguém a olhar, por isso... é continuar com o estridor de quem não respira bem estes ares.
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De O ultimo fecha a porta a 02.06.2019 às 18:50

Concordo plenamente. O próprio conceito do meu blog tal como o teu é nesse sentido :)
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De Sarin a 02.06.2019 às 19:18



Não nos calarão! 
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De /i. a 02.06.2019 às 14:02

Quando há tragédias que são filmadas aparece muita gente para ajudar, são difundidas muitas promessas. Depois quando começa a escassear as reportagens na TV, começa na mesma proporção a diminuição da mobilização de grupos de pessoas que queria fazer isto e aquilo. Ficam aquelas pessoas que realmente querem ajudar, que são as tais que não falam para o microfone de um canal de TV. Vemos em Moçambique, mas cá também temos exemplos: Monchique, figueira da foz..


Quando estava a meio do parágrafo que és uma cidadã com hábitos responsáveis e que tu dizes são pequenos gestos - despende da perspectiva, eu acho que não são- lembrei-me de uma frase: "sê a mudança para o mundo que queres" . E com essa tua atitude, os tais pequenos grandes gestos estás a construir o teu mundo específico. 


Esclarecer que a frase pertence a uma das séries que eu mais gostei: prison break. A frase estava inscrita na lápide do protagonista Michael Scofield
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De Sarin a 02.06.2019 às 15:03

Sim, o que vale para as vítimas de lá vale para as de cá, o esquecimento a todas envolve depois do manto dos telejornais...


O mundo específico choca todos os dias em tantos absurdos: o supermercado que não aceita que eu compre sem estar ensacado, a pastelaria que insiste em colocar o guardanapo sob o pão no prato lavado, o automobilista a quem digo que está a obstruir o passeio e que vendo-me saudável pergunta "e isso a si que lhe interessa", a insistência para que compre novo em vez de submeter a arranjo... é um mundo muito aquém do que poderia ser :(


Não vi a série (sou uma espécie de refugiada da televisão :)), mas conheço várias versões da frase, resumos de alguns dos discursos de Gandhi. "Sê a mudança que desejas no mundo" penso que é, também, o lema dos rotários.
Faço os meus boicotes desde a escola primária, não inspirada por tal frase mas por outros exemplos e leituras. Essa frase apenas deu mais força à minha consciência - que falha, humana que sou e dada a pequenos gestos como a pequenos prazeres, mas enquanto conseguir equilibrar e o positivo pesar mais que o negativo, óptimo 
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De /i. a 02.06.2019 às 16:56

Voltamos à conversa do outro dia em que há plástico a mais... deve ser utilizado com peso e medida. Há muito desperdício . E corroboro: se dá para consertar, para quê comprar novo. 


Sim há várias versões dessa frase. Claro acho que se todos fizéssemos um pouco não custava nada e teríamos uma planeta menos esquizofrênico   para deixar às gerações vindouras. O tal desenvolvimento sustentável que continua no papel. 
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De Sarin a 02.06.2019 às 22:48

Há coisas de que não podemos prescindir mesmo que queiramos - comprar água, pex, é comprar plástico. Mas podemos comprar garrafão em vez de garrafas, e já há pontos de água filtrada com reutilização do garrafão.


Enquanto cidadãos, podemos promover a sustentabilidade quotidianamente e podemos defende-la quando votamos e quando participamos na discussão pública de legislação, quando vamos a assembleias municipais ou autárquicas, enfim, quando intervimos politicamente sem estarmos necessariamente na vida política :)) 
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De P. P. a 02.06.2019 às 22:03


Totalmente de acordo. 
Com muita tristeza. Na semana passada constatei, junto do ministro não sei de quê e da ministra também não sei do quê, a par do secretário e da secretária de Estado não sei do quê… que os incêndios de outubro de 2017 estão esquecidos. O próprio país está esquecido em nome … em nome do quê? Não consigo entender!
Televisão, não obrigado. Não quero ser manipulado na forma de pensar.
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De Sarin a 02.06.2019 às 22:38

Estão esquecidos em nome da mais recente tragédia, por causa do último cataclismo, em função da última indignação... ao contrário das consequências e das causas, estas agitações não perduram.
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De Luísa de Sousa a 02.06.2019 às 17:44

"Sobretudo para não esquecer" tudo o que foi mencionado neste post e no post de ontem!



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De Sarin a 02.06.2019 às 19:14

Também, Luísa 
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De Mafalda Margarida a 02.06.2019 às 17:44

O tarot sempre me fascinou, mas decepcionou também. Desisti dele. Quando parava e meditava conseguia sempre saber o que queria, por intuição. E quando não conseguia, era porque tinha as emoções demasiado conturbadas e fora de controlo para perceber. O tarot disse-me coisas certas, mas também me levou ao engano. Hoje considero que está para a nossa intuição como as listas estão para a memória: um mero suporte. Mas continuo fascinada por bonitas cartas de tarot como esta que aqui mostra. O enforcado demonstra a imobilização voluntária. Lindíssima carta. Concordo quanto a tudo o resto; sou uma grande adepta dos produtos em segunda mão.
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De Sarin a 02.06.2019 às 19:17

Há artigos que ainda não consigo adquirir usados; mas há outros que até ganham com o uso - livros, dentro dos quais encontrei já tesouros deixados por antigos donos :)


Também achei esta carta muito bonita, mais do que as que normalmente se encontram.


Obrigada pela visita! Aparece mais vezes:)
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De Mafalda Margarida a 02.06.2019 às 19:20

Sou fã do olx. Até amigos já por lá fiz, fui dar com vizinhos e coisas afins eheheh! Mas, claro, em tudo é preciso cautela. 
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De Sarin a 02.06.2019 às 22:41

Cautela, sim, e atenção :)
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De Mafalda Margarida a 02.06.2019 às 22:53

E intuição! 
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De Rui Pereira a 02.06.2019 às 23:23

Muito bem Sarin!
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De Sarin a 02.06.2019 às 23:36

Obrigada, Rui :)
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De José da Xã a 04.06.2019 às 23:49

Sarin,


a mente do homem foi feita para esquecer. Jamais para lembrar.
E enquanto for assim o mundo há-de ser um sítio quase horrível para se viver.
Lamentavelmente.
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De Sarin a 05.06.2019 às 00:35

Então o meu destino cumprir-se-à tentando lembrar-me dos assim destinados ao olvido...


Se, na tentativa, ajudar a manter a sua memória noutros, sempre seremos menos a falar como se numa Comissão Parlamentar 

[a palavra a quem a quer]




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e uma viagem diferente



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