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No Brasil preparam-se para rasgar o Acordo Ortográfico de 1990.
Podem mesmo mudar a língua e o português do Brasil passar a ser brasileiro. É uma opção política, embora não propriamente protagonizada por Bolsonaro. Talvez que a ênfase colocada nos símbolos pátrios a exacerbe, mas não é de sua autoria.
Na verdade, desde 1911 e do primeiro acordo ortográfico que a ideia estaria latente em algumas elites intelectuais e políticas. Mas, aparentemente, este AO90 reacendeu o debate inflamando-o até às cinzas.
Intriga-me a mecânica do processo: o acordo com que pretendiam harmonizar a escrita e consolidar uma língua vai acabar por criar duas línguas em países que durante duzentos anos se entenderam. Há quem ao AO90 chame Caixa de Pandora, para mim sempre se assemelhou a um boomerang.
Não tenho argumentos técnicos nem políticos para defender se deve ou não deve ser uma nova língua, e confesso que não me interessa desde que continue a perceber o que dizem e escrevem do lado de lá.
Gostaria também de dizer "desde que perceba o que sentem", mas... não percebo. De todo.
Sinto-me a viver outra dimensão perante alegações como "Portugal colonizador quer colonizar a Língua Portuguesa", perante outras acusações que vou ouvindo e que mais me parecem tentativas de branquear a sua brasileira vergonha por em duzentos anos de independência não terem estancado aquilo de que nos acusam. Branquear não no sentido de lavar, mas de colar aos portugueses brancos de Portugal. No caso, os males da História, presente passado e futuro.
Não peço desculpa por me ter reconciliado com a História do meu país, mesmo com aquelas passagens vergonhosas, e não foram poucas!, ou aquelas horríficas, das quais imagino apenas esboços sem vislumbre real do imensas que foram.
Mas no agora o verbo conjuga-se no presente, não no pretérito. E o pretérito que a uns foi ensinado mais-que-perfeito e a outros imperfeito não é mais do que pretérito, simples.
Não aceito que me cobrem no presente qualquer dos pretéritos vividos e sofridos pelos nossos ancestrais. Sim, os meus avós também foram colonizados, também foram expulsos dos seus lares, também foram escravos, também morreram na gleba. E foram arrancados das casas que reconstruíram tantas vezes para atravessarem os mares e morrerem longe destes seus. Por isso respeitemos os mortos. Onde quer que tenham caído.
E não me queiram condoída pelas vossas línguas indígenas: em plena campanha, o vosso presidente anunciou pretender reduzir o espaço onde algumas ainda se podem considerar nativas! Onde esteve a vossa preocupação? Onde está, quando os índios que não dizimámos continuam a cair às vossas próprias mãos?!
Portanto, lambam as feridas como as lamberam os meus avós, como eu lambo as minhas. E avancemos, porque a gramática não pára o relógio e os vivos precisam de atenção, não de cucos!
Podemos construir sociedades melhores se aceitarmos que não podemos refazer a nossa História comum. Mas que podemos e devemos aprender com ela.
Afinal, em português (pt) ou em português (br), em língua portuguesa ou em língua brasileira, futuro grafa-se, ainda, da mesma exacta maneira.
Na imagem, grande plano sobre inversão do quadro "Fernando Pessoa", de Almada Negreiros
A mim, que sou um pobre gramático, causa-me muito espanto que argumentos sobre a língua, em particular a ortografia (porque noutros campos percebo que a língua é instrumento de independência), se radiquem em questões políticas. Em primeiro lugar porque não compete ao estado impor uma ortografia; vivemos (muito bem, por sinal) sem ela até 1911, a República impôs uma regra para acabar com a arbitrariedade e instabilidade ortográfica. Mas agora é o estado a desestabilizar a ortografia, aquela mesma que resolvera fixar por lei: foi assim em 1911, em 1945, em 1973 e em 1990 (como é de 30 em 30 anos, está para breve a próxima). Em Portugal sempre gostámos muito de mudar a ortografia de mãe/pai para filho/filha.
E, tal como penso que o estado não manda na língua, também não me parece racional que um país mande na língua usada por outros países porque isso cria falantes de primeira, de segunda, de terceira e por aí fora. Mesmo a questão da norma é algo fascista (se achar muito forte, ponha aqui outro adjectivo) porque deve haver poucos absurdos maiores do que achar que Lisboa fala melhor português do que em Trás-os-Montes, o Alentejo ou o Algarve.
Não vou recordar aqui que os colonizadores esclavagistas do Brasil são os antepassados dos brasileiros «brancos» de hoje e que 200 anos de independência deveriam ter sido suficientes para crescer sozinho. A internet — esse poço de sabedoria — está cheia de brasileiros (eles são muitos, e por isso há também proporcionalmente mais ignorância) que lamentam terem sido colonizados por portugueses. Dizem que preferiam ter sido colonizados por holandeses ou ingleses porque as antigas colónias daqueles são países mais desenvolvidos e que no segundo caso não precisavam de aprender inglês. Quer mais mentalidade de colonizado do que preferir usar a língua de outro do que a consciência de que é por eles falarem português que o português tem peso no mundo?
Seja como for, e desculpe a divagação, no debate sobre o acordo ortográfico tenho lido, do lado dos prós como dos contras, argumentos de profunda xenofobia. O português do Brasil não é uma língua de índios, é uma variante do português europeu, tal como os países africanos têm as suas (nos casos de Angola e Moçambique as realidades linguísticas são muito interessantes porque grande parte da população não fala o português como língua materna, sendo aquela a língua do ensino). Isso não lhe atribuiu (tal como não atribui ao português do nosso jardim) nem qualidades inferiores nem superiores. As coisas são como são e são diferentes. Não me repugnaria ortografias diferentes, mas acho que se é para ser orto- («correcta») só deveria haver uma grafia. Se se considerar que as variantes divergiram tanto que se tornaram línguas diferentes, então a história é outra: é que países independentes usam a língua como garante da sua soberania.
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