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Pátria e Língua desacordadas

por Sarin, em 02.05.19

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No Brasil preparam-se para rasgar o Acordo Ortográfico de 1990.

Podem mesmo mudar a língua e o português do Brasil passar a ser brasileiro. É uma opção política, embora não propriamente protagonizada por Bolsonaro. Talvez que a ênfase colocada nos símbolos pátrios a exacerbe, mas não é de sua autoria.

Na verdade, desde 1911 e do primeiro acordo ortográfico que a ideia estaria latente em algumas elites intelectuais e políticas. Mas, aparentemente, este AO90 reacendeu o debate inflamando-o até às cinzas.

 

Intriga-me a mecânica do processo: o acordo com que pretendiam harmonizar a escrita e consolidar uma língua vai acabar por criar duas línguas em países que durante duzentos anos se entenderam. Há quem ao AO90 chame Caixa de Pandora, para mim sempre se assemelhou a um boomerang.

 

Não tenho argumentos técnicos nem políticos para defender se deve ou não deve ser uma nova língua, e confesso que não me interessa desde que continue a perceber o que dizem e escrevem do lado de lá.

 

Gostaria também de dizer "desde que perceba o que sentem", mas... não percebo. De todo.

Sinto-me a viver outra dimensão perante alegações como "Portugal colonizador quer colonizar a Língua Portuguesa", perante outras acusações que vou ouvindo e que mais me parecem tentativas de branquear a sua brasileira vergonha por em duzentos anos de independência não terem estancado aquilo de que nos acusam. Branquear não no sentido de lavar, mas de colar aos portugueses brancos de Portugal. No caso, os males da História, presente passado e futuro.

 

Não peço desculpa por me ter reconciliado com a História do meu país, mesmo com aquelas passagens vergonhosas, e não foram poucas!, ou aquelas horríficas, das quais imagino apenas esboços sem vislumbre real do imensas que foram.

Mas no agora o verbo conjuga-se no presente, não no pretérito. E o pretérito que a uns foi ensinado mais-que-perfeito e a outros imperfeito não é mais do que pretérito, simples.

Não aceito que me cobrem no presente qualquer dos pretéritos vividos e sofridos pelos nossos ancestrais. Sim, os meus avós também foram colonizados, também foram expulsos dos seus lares, também foram escravos, também morreram na gleba. E foram arrancados das casas que reconstruíram tantas vezes para atravessarem os mares e morrerem longe destes seus. Por isso respeitemos os mortos. Onde quer que tenham caído.

E não me queiram condoída pelas vossas línguas indígenas: em plena campanha, o vosso presidente anunciou pretender reduzir o espaço onde algumas ainda se podem considerar nativas! Onde esteve a vossa preocupação? Onde está, quando os índios que não dizimámos continuam a cair às vossas próprias mãos?!

Portanto, lambam as feridas como as lamberam os meus avós, como eu lambo as minhas. E avancemos, porque a gramática não pára o relógio e os vivos precisam de atenção, não de cucos!

Podemos construir sociedades melhores se aceitarmos que não podemos refazer a nossa História comum. Mas que podemos e devemos aprender com ela.

Afinal, em português (pt) ou em português (br), em língua portuguesa ou em língua brasileira, futuro grafa-se, ainda, da mesma exacta maneira.

 

 

 

Na imagem, grande plano sobre inversão do quadro "Fernando Pessoa", de Almada Negreiros

[Cuidemos de todos cuidando de nós: Etiqueta respiratória. Higiene. Distância física. Calma. Senso. Civismo.]
[há dias de muita inspiração. outros que não. nada como espreitar também os postais anteriores]

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lançado às 21:37

Onde ideias-desabafos podem nascer e morrer. Ou apenas ganhar bolor.


Obrigada por estar aqui.



10 comentários

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De Robinson Kanes a 02.05.2019 às 23:28

Que grande texto! Parabéns... Mas agora andamos todos preocupados porque alguém chamou "zuca" a alguns brasileiros... Tiro-lhe o meu chapéu!


P.S.: embora tenha de reconhecer que o Brasil, em algumas situações, já fez mais pela nossa língua e sobretudo pela nossa literatura que nós próprios.
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De Sarin a 02.05.2019 às 23:51

Obrigada, Robinson. Anteontem quase escrevi sobre a questão das pedras e acabaria por abordar este tema global; mas já tinha comentado tanto no seu postal que um meu postal sobre o tema ser-me-ia redundância.
Aconteceu vir a propósito hoje :)


Não reconheço essa distinção que faz - a Língua Portuguesa ainda nos é comum. Brasileiros ou Portugueses... todos escrevem em Português. Até agora. Uma nacionalidade não pode reclamar para si louros sobre a Língua quando esta nos é comum. Pode e deve fazê-lo sobre os escritores que guardam as realidades de cada sociedade :)
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De Sarin a 02.05.2019 às 23:52

E não tire o chapéu, fica-lhe muito bem :)
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De Sarin a 02.05.2019 às 23:58

(Eu pensava que na "sua" foto tinha chapéu ou boina... mas talvez seja franja :D )
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De Maria Araújo a 03.05.2019 às 22:59

Conheço alguém que em jovem foi para o Brasil por algum, pouco, tempo ( há quem diga que foi de férias).
Quando regressou falava português do Brasil, na perfeição, e adoptou-a como sua língua natal até hoje.
Terá esta mulher cinquenta e muitos anos. 
E é professora de português.
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De Sarin a 03.05.2019 às 23:21

Tenho facilidade para apanhar os sotaques e as expressões regionais que vou ouvindo. Viagem de finalistas, 3 semanas no Brasil - ao segundo dia começamos a falar ao jeitinho brasileiro - estávamos fartos de que nos chamassem argentinos!
Mas no avião a coisa passou.
Essa sua conhecida optou por outras sonoridades linguísticas; eu optei por aprender Língua Gestual Portuguesa... opções :))
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De Ricardo Nobre a 26.06.2019 às 06:32

A mim, que sou um pobre gramático, causa-me muito espanto que argumentos sobre a língua, em particular a ortografia (porque noutros campos percebo que a língua é instrumento de independência), se radiquem em questões políticas. Em primeiro lugar porque não compete ao estado impor uma ortografia; vivemos (muito bem, por sinal) sem ela até 1911, a República impôs uma regra para acabar com a arbitrariedade e instabilidade ortográfica. Mas agora é o estado a desestabilizar a ortografia, aquela mesma que resolvera fixar por lei: foi assim em 1911, em 1945, em 1973 e em 1990 (como é de 30 em 30 anos, está para breve a próxima). Em Portugal sempre gostámos muito de mudar a ortografia de mãe/pai para filho/filha.

E, tal como penso que o estado não manda na língua, também não me parece racional que um país mande na língua usada por outros países porque isso cria falantes de primeira, de segunda, de terceira e por aí fora. Mesmo a questão da norma é algo fascista (se achar muito forte, ponha aqui outro adjectivo) porque deve haver poucos absurdos maiores do que achar que Lisboa fala melhor português do que em Trás-os-Montes, o Alentejo ou o Algarve.

Não vou recordar aqui que os colonizadores esclavagistas do Brasil são os antepassados dos brasileiros «brancos» de hoje e que 200 anos de independência deveriam ter sido suficientes para crescer sozinho. A internet — esse poço de sabedoria — está cheia de brasileiros (eles são muitos, e por isso há também proporcionalmente mais ignorância) que lamentam terem sido colonizados por portugueses. Dizem que preferiam ter sido colonizados por holandeses ou ingleses porque as antigas colónias daqueles são países mais desenvolvidos e que no segundo caso não precisavam de aprender inglês. Quer mais mentalidade de colonizado do que preferir usar a língua de outro do que a consciência de que é por eles falarem português que o português tem peso no mundo?

Seja como for, e desculpe a divagação, no debate sobre o acordo ortográfico tenho lido, do lado dos prós como dos contras, argumentos de profunda xenofobia. O português do Brasil não é uma língua de índios, é uma variante do português europeu, tal como os países africanos têm as suas (nos casos de Angola e Moçambique as realidades linguísticas são muito interessantes porque grande parte da população não fala o português como língua materna, sendo aquela a língua do ensino). Isso não lhe atribuiu (tal como não atribui ao português do nosso jardim) nem qualidades inferiores nem superiores. As coisas são como são e são diferentes. Não me repugnaria ortografias diferentes, mas acho que se é para ser orto- («correcta») só deveria haver uma grafia. Se se considerar que as variantes divergiram tanto que se tornaram línguas diferentes, então a história é outra: é que países independentes usam a língua como garante da sua soberania.

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De Sarin a 26.06.2019 às 10:04

Há, sim, muita xenofobia na recusa do AO90, e já não tenho paciência para tais argumentos. A minha prende-se com a questão heterográfica - se é para ser orto, porque contempla dupla grafia? E como pode querer aproximar a grafia ao modo de falar mantendo um X que tem 4 valores fonéticos e ignorando a riqueza fonética dos sotaques regionais? Não sou linguista, mas não será necessário conhecimento profundo para perceber que este acordo faz da etimologia, da história da língua, uma questão de somenos menor do que nos acordos anteriores.
Não tenho conhecimentos para avaliar as divergências entre as variantes, mas supunha que eram estas que faziam do português uma língua ainda mais rica. A soberania não estará, no caso, posta em causa pela língua; parece-me que a questão se prende antes com identidade.
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De Ricardo Nobre a 26.06.2019 às 18:41

As pessoas mais inteligentes que são contra (lembro-me do jornalista Nuno Pacheco, do Público) usam exactamente esse argumento: a riqueza é ter variedade, não é recortá-la para vender mais livros, como se os que até agora foram publicados tivessem ficado desactualizados.
Seja como for, a ortografia de 1990 foi posta em prática sem se atender à opinião fundamentada dos profissionais da língua (linguistas, sim, mas também escritores, jornalistas e editores de todo o tipo de texto além do literário). Venceu o argumento da simplificação, da aproximação à oralidade, que seria a forma de o português se afirmar como língua internacional; basta ver como a maré de turistas não trouxe uma ondinha de pessoas que viessem cá aprender a língua e como restaurantes e todo o tipo de casa de pasto e hotéis abrem com nomes em inglês — precisamente a língua mais etimológica que conheço. Uma língua de grafia etimológica, para mim, significa apenas isto: uma língua que não tem vergonha de ter um passado e que orgulhosamente assume as suas rugas.
Já agora: uso a grafia de 1945 com alterações nos anos 70 porque é a que está estruturada num estudo exemplar sobre a forma de escrever os sons, atendendo à etimologia e com respeito a alguma simplificação (não estou a dizer que é perfeita, porque acho que se deveria ter continuado a escrever viaducto e instructor e que se deveria ter mantido o uso do trema); falo do Tratado de Ortografia da Língua Portuguesa, de Rebelo Gonçalves (autor de um Vocabulário da Língua Portuguesa publicado em 1966 e que ainda hoje é insubstituível pela qualidade e nível de fiabilidade).
Pronto, já não a maço mais com ortografia! Bem-haja e até breve!
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De Sarin a 26.06.2019 às 19:02

Não me maça mais porque não me maça nada - a minha área natural é Ciências mas, porque me foge o pezinho para a dança das letras, sinta-se à vontade para bailar sobre o tema as vezes que entender.

Há alguns cc corridos de onde eram naturais, mas tendo aprendido a escrever na década de setenta apenas lhes intuo o lugar e talvez por isso lamente menos.

A oralidade é cada vez mais vergonhosa; haverá quem tema por ela, trema com ela - eu ressinto-me em cada assassínio, como flores repetindo a palavra para arejar... mas nada. O trema faz mesmo falta.
E, lamento, mas não me entra a norma pelo ouvido: um militar há-de carregar-me os ii montanha abaixo ou acima, milimetricamente se necessário! E os olhos vêem tão bem terminando em ss ou em jj, que se queriam normalizar começassem pelo X da questão!


Adorável, a sua definição: "uma língua que não tem vergonha de ter um passado e que orgulhosamente assume as suas rugas". Penso que adoptarei :))

[a palavra a quem a quer]




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