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O grotesco na Porta dos Fundos

por Sarin, em 26.12.19

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Li a notícia. Li várias opiniões e várias respostas às opiniões. Pois também quero opinar!

 

Não posso condenar o ataque à sede do Porta dos Fundos.

Não posso condenar porque, ainda que fosse juíza, não condenaria um ataque, condenaria quem o leva a cabo. E aos que usam a violência física para contestar palavras condenaria a trabalhos forçados - forçá-los-ia a trabalhar em silêncio. A viver em silêncio, até à eternidade ou até perceberem a liberdade de expressão, o que acontecesse primeiro.

Mas não sou juíza, apenas os posso condenar ao silêncio no mundo que domino: as minhas palavras, a minha casa, os meus blogues. Não serão mencionados depois de classificados pelo acto cometido: este foi vil, eles, além de vilões e terroristas, foram imbecis. Como são todos os que recorrem à pedra contra a palavra.

 

E apenas posso classificar de grotesco o discurso dos defensores da liberdade de expressão que, tolerantes às piadas, dizem ser fácil gozar com a cristandade - ser fácil e ser de cobarde, pois de gente forte e sem papas na língua é gozar com o islamismo! E relembram e comparam o drama do Charlie Hebdo, claro. 

Tal abordagem revela um profundo desconhecimento da obra dos agredidos - tanto a trupe do Porta dos Fundos como a do Charlie Hebdo (como a dos nossos Gato Fedorento, aproveito para relembrar) têm rábulas e artigos com Jesus, Deus, Maomet, Alá... sei lá se não, até, com Buda e Hare Krishna!  Mas no embalo da crítica, as assumpções são quase naturais aos desaçaimados discursadores - porventura quem normalmente os lê desconhecerá ainda mais. 

Revela, também, desconhecimento ou desprezo por aquilo que rege a liberdade de expressão: o direito de escolher os temas. Porque em tal discurso denotam não perceber que o autor, o criador, fala sobre o que lhe apetece e não sobre o que aos comentadores daria jeito ou gosto. Nem se apercebem, ou fingirão que não sabem, que questionar tal direito é, já de si, uma tentativa de condicionamento da liberdade de expressão que dizem defender. É um mas tão claro como outro mas qualquer.

Depois, revela-se-lhes o preconceito entrelaçado na defendida tolerância. Assumem que, ao ironizar-se com o Islão, se convoca a fúria dos islâmicos mas que, ao ironizar-se com o Cristianismo, os cristãos acham piada ou, numa prova de suprema abnegação, sentem-se mas não se ressentem. Talvez o assumam porque imbuídos de uma extraordinária fé, que não será de S. Tomé! São Tomé seria ateu, pois olhando ao redor nada encontraria que atestasse serem os cristãos gente da paz e do amor... mas eles, os tais opinadores, não, eles crêem! Não há História nem histórias que os demova da crença de serem os cristãos gente amorosa e pacífica apenas pelo facto de, puramente, aceitarem um Cristo. E a suprema anedota: defenderem a tolerância, a diferença, dizendo nas entrelinhas que ser cristão ou ser islâmico define os indivíduos e os arrebanha por iguais.

Não desculpam o acto de terrorismo contra o Porta dos Fundos, atenção! Mas o outro, o do Charlie, esse é que foi terrorismo, neste talvez nem tivessem intenção de fazer mal a uns cobardes que apenas falam mal da cristandade por temerem pela própria porta dos fundos... Grotescos.

 

A tolerância parece-me perigosa quando guiada pelo preconceito e pelo desconhecimento.

E mais não digo por ser natal...

[Cuidemos de todos cuidando de nós: Etiqueta respiratória. Higiene. Distância física. Calma. Senso. Civismo.]
[há dias de muita inspiração. outros que não. nada como espreitar também os postais anteriores]

Autoria e outros dados (tags, etc)

lançado às 16:50

Onde ideias-desabafos podem nascer e morrer. Ou apenas ganhar bolor.


Obrigada por estar aqui.



18 comentários

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De C.C. a 26.12.2019 às 18:57

Vou ter de ler mais sobre o assunto para poder opinar como deve de ser...
Hoje atiram-se logo pedras, porque a crítica é de graça, então atiram logo a matar! Tão fácil não é...
A liberdade enquanto de expressão tem muito que se lhe diga!

Bom resto de semana!
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De Sarin a 26.12.2019 às 19:09

Pior, CC, é o que se diz nas entrelinhas dos discursos aparentemente tolerantes... resta saber se se diz intencionalmente ou se é desatenção imponderada.


Bom resto de semana, Boas Festas :)
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De Fleuma a 26.12.2019 às 23:09

Sendo eu absolutamente descrente em organizações religiosas, ou religiões, ainda que tendo uma visão muito pessoal sobre o conceito de Deus, gostaria de destacar que a liberdade de expressão, no seu ponto mais claro, aceita que nada é vedado a  criticas - ou humor. Mesmo que discordemos. 


No meu caso pessoal, e porque o meu sentido de humor é escasso, pouco tolerante para o que é pacóvio, nunca achei piada a portas de fundos, o que mais me irrita é a piada macaca e principalmente, covarde.


Espancar arrogantemente o Cristianismo por estes dias e achar uma réstia de humor digno nisso, é precisamente o mesmo que bater num moribundo: fácil e sem risco. Medricas.


Mas suprema covardia é baixar a cabeça como cães domésticos perante o Islão e o seu profeta. Aqui sim! Como seria, se não fossem apenas cretinos sem humor, algo para  esta "religião de paz"? Os poucos exemplos de coragem não são animadores ...Seria interessante perceber quando seriam 
mortos.


Não que me interesse o Cristianismo, mas menos me interessa o islamismo. 


Engraçados e apenas imbecis, mas com religiões mortas.




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De Sarin a 27.12.2019 às 00:24

Mas, Fleuma, uma das minhas críticas é exactamente a inexactidão de tal afirmação: porque fazem humor com ambas as religiões. Fazerem rir dependerá das sensibilidades, mas fazem, ou fizeram, humor com ambas as religiões.
Outra das minhas críticas centra-se na tentativa subliminar de condicionar os autores. Fácil será fazer humor com os ausentes - gozar com islâmicos em países onde estes são quase inexistentes seria bater em bebés, não?


Não vi a rábula que esteve na origem da polémica. Mas li demasiados artigos sobre o assunto - não questiono o tipo de humor, aponto os ataques à liberdade de expressão. Gosto de Monty Python, mas não gosto de tudo o que produziram. Idem para os Gato. Nunca gostei de Charlie Hebdo, e dos Porta dos Fundos vi o primeiro episódio que passou em Portugal e mais três ou quatro rábulas no You Tube - uma delas a tal onde gozam com Alá. 
Portanto, não é a solidariedade para com o tema ou o tipo de humor que me move. É mesmo o princípio da questão: a liberdade de expressão pode ter mas - mas debate-se, não se delapida. Sob nenhuma forma, muito menos encapotadamente como li a vários auto-intitulados defensores da liberdade de expressão.


E, mesmo ateia agnóstica, desejo Boas  Festas :))
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De /i. a 27.12.2019 às 00:20

Eu ando a ver e ler poucas... 
O Cristo homossexual? Então não hão-de estar revoltados. É tema tabu no mundo das religiões. Isto é assim: a concepçào de Jesus amplamente divulgada mais parece uma anedota, um momento de humor sem piada. Mais uma invenção, não há mal nenhum. A tolerância e a liberdade de expressão é aceite quando nós não somos os alvos... 
Fanatismo religioso é o que destrói as religiões que já por são baseadas em factos que não se conseguem provar.
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De Sarin a 27.12.2019 às 00:30

Concordo, /i. Plenamente.
E, ainda assim, a minha crítica recai sobre os alegados defensores da liberdade de expressão que arranjam mil e uma maneiras para tentar condicionar aquilo que defendem... aos fanáticos religiosos curá-los-ia como a  outros fanáticos: "olho por olho". Talião por tabela :)))
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De /i. a 27.12.2019 às 00:35

Exactamente. São uns incongruentes.
Era uma bela cura 
Enfim...
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De Sarin a 27.12.2019 às 02:02

Era :D
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De HD a 27.12.2019 às 20:59

A liberdade de expressão não é o valor mais importante... de um cristão?! ;-p 
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De Sarin a 28.12.2019 às 16:11

Parece que depende :s
:))
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De Ricardo Nobre a 28.12.2019 às 22:38

Faltou que o debate esclarecesse que o filme da Porta dos Fundos não ofende nenhuma religião porque é uma ficção e não um documentário promovido por teólogos. O Cristo lá representado não é o Cristo da Bíblia, mas uma personagem de um filme. E essa personagem é tão o Cristo bíblico (ou o dos apócrifos, uma personagem muito interessante, já agora) como o Cristo da Paixão de Cristo: nenhum é Cristo, é tudo «fingimento». Não é preciso acender a fogueira no Rossio (ou em Copacabana, sei lá).
Ah, sou um fã da Porta dos Fundos e da mensagem de Cristo (que é mais importante do que Cristo), que coloco em planos diferentes. Os rapazes já responderam. Ridendo castigat mores.
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De Sarin a 28.12.2019 às 23:31

É esse um excelente acrescento ao debate, sim. Mas penso ser, também, o de mais difícil compreensão para os extremosos e ofendidos crentes, os dogmas a refrearem-lhes a imaginação - ou, pior, a conduzirem-na.


Entrei no debate de viés, sou sincera - incomodou-me a serenidade com que se atacam os atacados, chamados cobardes por  ironizarem com o que lhes e nos é mais próximo.


Não sou fã dos Portas dos Fundos, não vi muito deles; e da mensagem de Jesus Cristo sou fã de algumas passagens, que aquela coisa do Pai e do reino d'além e tal está numa língua que não percebo - até nisto sou republicana!
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De Ricardo Nobre a 29.12.2019 às 08:30

Sem falar no facto de nos quatro evangelhos Cristo ser, afinal, uma personagem diferente (embora com alguma coerência).
O ataque às vítimas pertence ao mesmo movimento que, em casos de violência doméstica, dizem que a vítima estava mesmo a pedi-las porque fez isto ou aquilo, vestiu-se assim ou assado. Nestas alturas, diz-se sempre que a liberdade tem limites porque «a minha liberdade termina onde começa a do outro» (ainda há pouco o presidente da Assembleia da República o afirmou). Mas isso faz pouco sentido e revela uma confusão muito grande, a começar no facto de cada um ter a sua liberdade. Não tem: a liberdade é só uma, e, se eu fico ofendido com isso, olhe, como se diz na minha terra, tenho de prender a mula.
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De Sarin a 01.01.2020 às 01:37

Concordo: a liberdade é só uma e é-nos comum.
A minha liberdade acaba onde começa a do outro apenas faz sentido se virmos a liberdade como um quintal e não como todo o horizonte. Em tempos pensava tal frase como significando que a liberdade era matéria pessoal e intransmissível. Mas depois percebi que muitos a usavam (ou a sua inversa, que coloca o ónus da contenção no outro e não no próprio: "a liberdade dos outros acaba onde começa a minha") como indicadora de ter a liberdade limites. Apenas lhe reconheço um: a auto-censura da própria consciência. Consciência, não vaidade ou temor ou outro sentimento. Os abusos nunca são fruto de um qualquer excesso de liberdade mas de grosseiras faltas de respeito. 


Na minha terra dizemos atar o burro :)))
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De ó menina a 29.12.2019 às 23:33

Estas questões são muito interessantes quando vemos discursos alegadamente  tolerantes se transformam no seu contrário. 
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De Sarin a 30.12.2019 às 00:14

Foi exactamente o que me levou à escrita do postal, as muitas mensagens que se vão passando sob a capa da tolerância e da liberdade de expressão, mas.
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De Não Identificado a 31.12.2019 às 16:15




https://24.sapo.pt/atualidade/artigos/deputado-holandes-de-extrema-direita-anuncia-concurso-de-caricaturas-do-profeta-maome-a-ultima-vez-que-o-fez-foi-ameacado-de-morteEsperemos que desta vez o consiga fazer em paz e sem ser ameaçado de morte. Não podemos ter dois pesos e duas medidas.


Feliz 2020!
daVinci


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De Sarin a 31.12.2019 às 17:45

Há alguma confusão, caro Da Vinci: o artista cria e provoca (boas ou más) reacções, o deputado em causa instiga a que outros criem e provoquem. A sua instigação não se encontra abrangida pela liberdade de expressão. Pode, até e eventualmente, configurar crime. Imbecilidade é, certamente - um deputado deve defender políticas, não provocar conflitos e agitação gratuita. Se quer incentivar as artes, não é com concursos assim restritos que o conseguirá. 


Qualquer ameaça de morte é, também, uma enorme imbecilidade. Além do óbvio ataque aos Direitos do Homem.


Resumindo:
* A integridade física e o direito à vida são Direitos do Homem.
* A liberdade de expressão é um dos Direitos do Homem.
* A possibilidade de se ser imbecil não consta da Carta dos Direitos do Homem. É-nos inata, mas há quem a repudie e há quem a cultive. Felizmente a Justiça, não as conseguindo evitar, prevê mecanismos para lidar com grande parte das imbecilidades em que vamos tropeçando.


Feliz 2020, caro Da Vinci :)

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