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Museu. O termo, talvez quase tão antigo como a necessidade de preservar as artes, significa Templo das Musas. Casa onde se veneravam Calíope, Clio, Erato, Euterpe, Melpómene, Polímnia, Tália, Terpsicore, Urânia - as Artes, as Letras e as Ciências vistas como consequências de inspirações e desígnios.
A Humanidade avançou na História, as Ciências a Fé as Artes a Política sofrendo convulsões, revoluções, involuções e evoluções num continuado avanço em espiral. Nas civilizações moldadas pelas grega e romana poucos serão os que recordem as Musas; mas buscamos ainda a transcendência nas artes e no conhecimento, embora este século se vá assemelhando a um mergulho numa nova Idade Média, de um lado a Revolução Tecnológica e do outro a negação da Ciência, a censura das Artes - a crença a ocupar o lugar do pensamento, a emoção a anular a razão.
No entretanto, e será talvez uma questão de tempo, mas neste entretanto em questão, em que estamos, ainda há uma clara distinção entre o que são as Artes, as Letras, as Ciências Naturais e as Ciências Sociais e Humanas.
Sabemos distinguir Bibliotecas de Museus, mesmo que não percebamos a sua importância e ainda menos deles usufruamos; e vamos pedindo, as novas gerações mas também as mais velhas, que os Museus sejam interactivos, que nos permitam cruzar informação enquanto olhamos o exposto.
Porque os Museus são, genericamente, espaços estáticos, aglomerados de montras que nos permitem espreitar, ser tocados sem tocar aquilo que observamos. O exposto entra-nos nos sentidos, ou não. Recolhemos, expomo-nos a sensações e pensamentos com apenas um sentido - a visão. Basicamente, recebemos estímulo do objecto sem contexto.
O que estará muito bem para as Artes - sentir a obra não carece perceber o Artista ou a técnica, basta a obra e a sensibilidade de cada um.
As Ciências Naturais tratam os Museus com mais objectividade: expõem factos, as emoções que suscitam resultam mais das crenças e das sensibilidades de quem entra do que daquilo que é exposto e que tem como alvo o intelecto.
E depois temos as Ciências Sociais e Humanas... queiramos ou não, visitar a História da Humanidade é visitar aqueles que a viveram, é conviver por breves momentos com aquilo que foi.
3000 anos depois vejo nas Pirâmides os mortos caídos na sua construção tanto quanto vejo os ali intencionalmente sepultados - e sem os quais a edificação não existiria. Que dizer dos campos de concentração nazis, dos gulag soviéticos, dos tarrafais e peniches da minha própria História?
Museus destes têm obrigação de contar as várias histórias da História, e exigem especial sensibilidade quando alguns dos protagonistas vivem ainda.
Sim, os ditadores fazem parte da nossa História. Mas se hoje se visita o Louvre e os actos e omissões dos últimos Luíses já não emocionam, o mesmo não dirão ainda todos os que passam na António Maria Cardoso.
Os locais históricos acabam, em alguma altura, por se transformar em locais de romaria, o que, se no caso das vítimas é socialmente aceitável, no caso dos vitimadores é ofensivo para com os que lhe sofreram o regime - lembremo-nos do que se passa ali ao lado, no Vale dos Caídos, e da polémica por os corpos das vítimas terem entre eles o corpo do vitimador.
O mínimo que podemos fazer é respeitar a História e evitar o seu branqueamento: confrontar quem venera uma figura com todo o seu legado. Todo. Sem omissões.
Museu do Estado Novo em Santa Comba Dão? Concordo: um centro de estudos interactivo, em rede, ligado a Peniche, ao Tarrafal se Cabo Verde quiser.
Chamar-lhe Museu Salazar? Está bem: as paredes do museu e os muros das ruas que levam ao museu ostentando os nomes dos mortos políticos, dos prisioneiros políticos, dos exilados, dos emigrados, das vítimas da Guerra Colonial - as mortais e as outras.
Que Clio não poupe os romeiros.
[Este postal começou por ser um comentário ao postal do meu caro Filipe Vaz Correia, um poeta do caneco - ou melhor, do Caneca. De Letras. Mas era extenso... desisti. Envio-lhe daqui este postal. E um beijo abraçado nas discordâncias que não nos impedem o diálogo e o carinho.]
imagem: "Clio", de Pierre Mignard (Séc. XVII), domínio público
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