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Vivemos uma pandemia, e é difícil fugirmos ao tema. Mas há muitas pontas por onde lhe pegar. Por exemplo, nos termos usados.

Pandemia, que mais não é que a classificação geográfica da disseminação de uma doença, é um termo que assusta quem com ele não está familiarizado mas que sente a pandemia de agora. As outras pandemias têm passado por entre os salpicos dos espirros, e nem com a de 2009 a etiqueta respiratória foi devidamente assimilada, tão suavemente se foi.

Assusta o termo pandemia e assustam outros que, entretanto, passaram a fazer parte do nosso léxico diário. Mas este postal...

... não é sobre a pandemia e sim sobre a mitigação. Ou melhor, sobre o termo mitigação.

Isto porque surgiu a celeuma: "Mitigação é o acto de acalmar abrandar aliviar, e as autoridades estão a confundir a população porque, ao chamarem mitigação a esta fase, levam as pessoas a pensar que já não é preciso ter tanto cuidado e que se podem abrandar as medidas. As autoridades deveriam falar claramente em vez de confundir".

Haverá quem se interrogue legitimamente, por puro interesse na Língua Portuguesa, se esta mitigação não deveria ter outro nome. Mas a maioria dos que li, e foram vários, fazia desta questão uma arma de arremesso político contra o Governo, por interposta entidade - a DGS. O que é lamentável e insano.

[Antes de avançar no tema, relembro que o cargo de Director-Geral de Saúde é um cargo de nomeação política mas está sujeito a procedimento concursal, com requisitos técnicos específicos. Não é um cargo atribuído por simpatia ou confiança política, mas por comprovada capacidade técnica. Assim, os tiros lançados contra Graça Freitas que, na verdade, visam, António Costa, são tiros nos pés. 

E, em jeito de declaração de desinteresse, informo que estou muito longe de simpatias partidárias e que este texto não é uma validação pessoal da actuação da DGS ou do Governo. Já agora, fica a nota: não alimentarei qualquer tentativa de debate que parta de presunção contrária.

Voltemos à mitigação.]

Um primeiro argumento que gostaria de desmontar é aquele que se refere à eventual confusão causada pelo termo junto da população. Sabendo que a Língua Portuguesa tem muitos mais vocábulos do que aqueles que ordinariamente se usam, teria muito gosto em saber quantas pessoas usariam correntemente o nome mitigação ou o verbo mitigar antes desta pandemia. Isto porque, sendo-me termos frequentes, muitas vezes tive de os explicar a pessoas de diferentes estratos académicos, profissionais e sociais. Minudências (olha outro) que pouco contribuem para esta questão, mas que, se extrapoladas, talvez demonstrassem que a confusão não será propriamente no público em geral. Infelizmente, quando escrevi que "gostaria de desmontar o argumento" não usei o condicional por delicadeza - ter acesso a tal estudo é mesmo condição para demonstrar se se confundiu uma franja da ou a população e, na sua inexistência, nada posso afirmar com certeza, apenas supor. Fica, assim, uma desmontagem à consideração do freguês.

Mas sem dúvida que o segundo argumento pode ser desmontado: "as autoridades devem falar claramente à população."

Absolutamente de acordo. Repito: absolutamente de acordo.

Acontece que as autoridades falaram claramente à população. Disseram que a fase de mitigação era aquela em que as cadeias de transmissão já eram locais, não importadas, e disseram até que podia ser transmissão em ambiente fechado, onde ainda se rastreava a origem, ou a nível comunitário, já não se conseguindo acompanhar a cadeia de transmissão. Explicaram que era a fase mais grave e que exigiria mais cuidado da nossa parte, pelo que não poderíamos descurar as orientações das autoridades e deveríamos manter o confinamento e as regras de higiene. Afirmaram ser a fase em que os infectados já não seriam automaticamente internados, apenas aqueles cujos cuidados assim o exigissem. Disseram, até, que os hospitais apenas acolheriam os pacientes com sintomas graves e que esperavam que a curva epidemiológica fosse achatada* o mais possível, de forma a evitar triagem em função da esperança de vida - como se está já a fazer em Itália e em Espanha.

Se, depois disto, alguém ficou com dúvidas sobre o não abrandamento das medidas, terá sido por desatenção, pois a mensagem foi propalada pelas autoridades e repetida em, pelo menos, três canais televisivos e cinco jornais online, em diversas e distintas ocasiões, quer pelas autoridades (Graça Freitas na mira) quer pelos jornalistas de serviço. Até eu, que mal vejo televisão, os apanhei no ecrã em passagens várias frente aos aparelhos.

Assim, a celeuma parece ser induzida não pelo emissor da mensagem nem pelo conteúdo da mensagem, mas por alguns receptores que terão ficado confusos com o termo ou que nele terão visto uma oportunidade. Receptores entre os quais vi professores e linguistas, muito incomodados com a tal "confusão causada à população" (ver uns parágrafos acima, sff). Se nos outros ainda se compreende a confusão, nestas classes profissionais, não. Porque estes profissionais são os que mais obrigação têm de saber que os termos gerais podem ter também usos específicos, técnicos - e que, neste caso, serão aplicados conforme as abordagens.

Tomemos o caso da epidemiologia, de onde nos vem esta fase de mitigação - e que, ao contrário do que parecem crer alguns cidadãos, não foi inventada para a Covid19. A abordagem é feita em função do agente infeccioso e seus efeitos. Na fase de contenção, as autoridades controlam a forma como este se transmite e concentram esforços em rastrear e quebrar a sua evolução, a sua disseminação. Tentam conter o agente. Na fase de mitigação não tentam controlar o agente porque este está já fora de controlo - os recursos concentram-se no abrandamento dos seus efeitos: na mitigação da doença. Mitigação dos efeitos do agente infeccioso, não abrandamento das medidas tendentes a evitar a sua disseminação. Que não abrandam, não entre nós, população - mas, agora, as autoridades dedicam-se menos aos infectados e mais aos doentes graves, porque o número destes aumenta exponencialmente. Em qualquer epidemia, não apenas nesta.

Depois das explicações dadas e repetidas em vários canais sobre o que é a Fase de Mitigação, pergunto-me o que levaria a população a pensar que fase de mitigação é o mesmo que acto de mitigação, e que se poderia usar livremente os seus sinónimos, entendendo fase de mitigação como abrandamento das medidas de segurança sanitária. Isto, mesmo supondo que metade da população mitigava a minha descrença no seu conhecimento do termo.

Conhecimentos mais ou menos técnicos à parte, e a título de curiosidade: consultando a Infopédia, veremos que mitigação significa, também e genericamente, limitar a severidade ou os efeitos nefastos de algo. Quase permite pensar que esta é uma controvérsia nascida da má escolha de dicionários. E assim pensaria, se não fossem os tirinhos à DGS.

 

Voltando, ainda, à "clareza da informação". 

A informação foi transmitida de forma clara.

Ninguém é obrigado a conhecer conceitos técnicos que lhe não são quotidianos, mas a explicação foi bastas vezes veiculada e a dúvida levantada  geraria menos, esta sim, confusão entre a população se todos os que a difundiram o tivessem feito como dúvida de Português e não como deficiente comunicação por parte das autoridades - os tais tirinhos.

 

 

* Este achatamento da curva merece um reparo, até porque ainda ontem à noite Marques Mendes o trocou com o planalto. A curva epidemiológica é uma campânula, do lado esquerdo o aumento do número de infectados, do lado direito a diminuição, contabilizados ao longo do tempo (o tempo no eixo horizontal, o das abcissas). No topo da curva, que coincide com o número máximo de infectados, poderemos deparar com um máximo de infectados obtido em escassos dias, o pico, normalmente resultante de um crescimento abrupto (uma campânula alta e estreita), ou com o planalto, em que os números se mantêm em máximos ao longo de um período mais prolongado (um sino mais baixo e largo). Achatar a curva significa conseguir diminuir o número de infectados num mesmo período, ou seja, actuar no lado esquerdo da curva, no lado do crescimento. Deste achatamento pode resultar o tal planalto, e na prática parecem ser a mesma coisa, até porque um planalto é um achatamento - mas aquilo que tentamos obter com o confinamento e com todas as outras medidas é o prolongar do período de crescimento da curva e não o prolongar do período de topo. Esta já não é uma questão da linguística e sim da matemática (e da biologia), mas fica a nota.

[Cuidemos de todos cuidando de nós: Etiqueta respiratória. Higiene. Distância física. Calma. Senso. Civismo.]
[há dias de muita inspiração. outros que não. nada como espreitar também os postais anteriores]

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lançado às 06:10

Onde ideias-desabafos podem nascer e morrer. Ou apenas ganhar bolor.


Obrigada por estar aqui.



22 comentários

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De Sarin a 03.04.2020 às 16:09

A essa autoridade costumo eu chamar doutor da mula ruça. Como se sabe, as mulas zurram e a caravana passa, e eu estou nisto pela troca de ideias e de argumentos. Quando puxam de tais galões, aguardo que saquem do pano com que os lustram - as insígnias ganham verdete.
Penso que alguns não o dirão para traçar graus de conhecimento entre si e o interlocutor e, assim, se estabelecerem como autoridades na matéria, mas antes como explicação para o facto de a conhecerem. Ou talvez não. 
Já quanto ao dizerem-se detentores de conhecimento (qb ou absoluto) e negarem-no com as evidências, tenho padecimentos semelhantes aos seus. Mas esta é uma área que, interessando-me, não é a minha, daí a afirmação inicial de não entrar em ansiedade nesse campo da linguística.

[a palavra a quem a quer]




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