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Manifestações e confinamento I

Postal 1 de uma série de 3, a publicar hoje

por Sarin, em 08.06.20

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Enquanto vivemos esta pandemia que nos confinou e ainda confina, têm eclodido por muito mundo manifestações contra o racismo e a violência policial, espoletadas pela morte de George Floyd mas, creio, devidas a todos os maus tratos e a todos os destratos sofridos na pele de outra cor, no formato de outros olhos, nos hábitos de outra etnia. [também abordo, noutra perspectiva, o tema destas manifestações aqui]

 

E há quem se insurja contra as manifestações e contra os manifestantes porque estão a violar a regra do distanciamento social.

É verdade, estão. E eu defendo o distanciamento desde o início. Continuo a defender, até provas que contrariem ser esta uma das melhores acções de contenção do vírus.

Tal como defendi e defendo que não podemos nem devemos estar presos em casa, desde que, e reforço este desde que, respeitadas as regras de distância, higiene e etiqueta respiratória (agora com máscara, assim a saibamos usar).

Também não aprecio manifestações de rua. Posição minha: sou um ser social que não aprecia multidões por reconhecer as dinâmicas de grupo e desconhecer as intenções do manifestante do lado, cada vez menos claras.

Não as apreciando, reconheço o peso que as manifestações podem ter na formação da opinião pública, na captação de atenção mediática, na pressão junto do poder político. Mas nem interessa se gosto ou reconheço validade às manifestações, estas ou outras - defendo o direito de manifestação, e é quanto basta para não me insurgir quando ouço falar nelas, mesmo em tempos de pandemia (desde que, cf. acima).

E defendo o respeito pelas orientações legais definidas para o nosso comportamento, pois que de base democrática e orientadas pelos Direitos Humanos.

Tanto como defendo o direito de objecção de consciência, o direito de resistência e a não legislada mas reconhecida desobediência civil, que nesta métrica de obedecer tem de haver pesos e contrapesos de justiça.

 

Entre estes sins e estes nãos, quase pareço dividida quanto às manifestações em plena pandemia... mas tenho as ideias inteiras e claras. Muito claramente, parece-me que o racismo é mais letal que a covid-19, aliás, parece que a própria covid-19 é também racista em algumas democracias. E, segundo as estatísticas, o racismo tem demonstrado ser, também ele, altamente contagioso.

Chegamos assim ao ter de escolher entre distanciamento social para aplanar a curva da covid-19 e ajuntamento social para aplanar a curva da racismo-XXI. Como, sequer, ter coragem de criticar uma ou outra opção, dizer o que deve ou não defender, como deve ou não sofrer, e quiçá morrer, cada um de nós? Quem for da cor certa que vista a pele dos outros antes de tossir, que a curva da covid-19 é premente e recente e a do racismo, latente e prevalente.

Não, eu não me manifesto nas ruas. Escolho outras formas de manifestação. Mas percebo quem sai à rua contra o racismo e a violência policial - ou melhor, percebo quem pacificamente sai à rua contra o racismo e a violência policial, porque vandalismo ou cartazes como "um polícia bom é um polícia morto" e "make racists afraid again" não, não percebo. E percebo quem teme as manifestações por causa da covid-19 - ou melhor, percebo quem teme pelo não cumprimento das regras de distanciamento social, porque as críticas à realização como "realmente, não se percebe porque é que a situação em Lisboa é tão grave" ou a negação do direito de manifestação por comparações com "festivais de música" e "reabertura de estádios de futebol" não, não percebo.

Tal como não percebo quem acha "um exagero, tanta manifestação" - um exagero é um ataque racista, mais ataques são demasiados exageros. Sem exagero, as reacções nas redes e as manifestações quase ubíquas estão a provocar mudanças reais nos EUA. A forma como os dirigentes reagem às manifestações também pode provocar mudanças, Trump que o diga.

 

Enfim, a covid-19 é questão de vida e de morte. Tal como são de vida e de morte as reivindicações destes manifestantes. E quem achar que podem ser adiadas para depois da pandemia que se fique sossegado a aguardar-lhe o fim, porque é este um daqueles raros casos em que calar é ficar do lado da solução e falar é ficar do lado do problema.

imagem recolhida em Postal

parte das críticas surgiram associadas a esta fotografia. o que estranho, dada a quantidade de manifestações e de fotos disponíveis.

[Cuidemos de todos cuidando de nós: Etiqueta respiratória. Higiene. Distância física. Calma. Senso. Civismo.]
[há dias de muita inspiração. outros que não. nada como espreitar também os postais anteriores]

Autoria e outros dados (tags, etc)

lançado às 08:30

Onde ideias-desabafos podem nascer e morrer. Ou apenas ganhar bolor.


Obrigada por estar aqui.



8 comentários

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De José da Xã a 09.06.2020 às 01:48

Sarin,


Desde 1975 que não me lembro de ir a uma "manife" (era assim que se dizia na altura).
Reconheço que este tipo de indignação possa ter algum impacto... mas será coisa de somenos.
E isto do covid... bom quem lá vai sabe ao que se sujeita. Portanto adiante.
Há muito racismo por todo o lado... mas eu chamar-lhe-ia mais... intolerância. Porque a besta humana que matou Floyd mataria um de nós de igual maneira. Mas aí já não seria racismo, certo?
Portanto vou mais longe ao pensar que o problema de certas sociedades intolerantes advém do facto de pensarem que estão acima da Lei.
Tenho 61 anos e desde miúdo que lidei com gente africana e comi muuuuuuuuuuitas vezes com eles à mesa em minha casa.  E nunca fui a África!
Gostei muito do teu texto. Logo lerei o resto.
Fica bem. 
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De Sarin a 09.06.2020 às 14:56

No postal Sobre o Racismo e a violência policial. Nos EUA mas não só, publicado no sardinhaSemlata, evidencio o porquê de considerar a morte de Floyd um acto de racismo e violência policial, não apenas de violência policial.
As manifs por lá já provocaram sérias alterações; por cá, onde o racismo assume contornos diferentes, terão menos força, sim, mas a solidariedade importa - e exporta, que os mayors norte-americanos não são imunes ao que diz o resto do mundo. Além disso, as frustrações sociais precisam de expor as discriminações e as desigualdades - ainda que muitos não as consigam apontar objectivamente, sentem-nas. Porque o ocidental racismo tem muitas cores: os ciganos são caucasianos. Tal como os hispânicos são caucasianos, e olha como tantos os tratam nos EUA. Tal como nós, latinos, somos caucasianos, e olha como tantos nos tratam por essa Europa. É que ser branco, para os racistas, não é ser caucasiano - há que ser caucasiano e ser da cultura certa, da sociedade certa. E depois há os não caucasianos, vê Tutsi vs Hutu, ambos negróides, vê Rohingya e Kuki e Uigur , todos mongolóides e todos alvos de racismo por povos mongolóides. E estes são apenas os mais evidentes, os mais sangrentos.
Não me parece que o racismo e as outras intolerâncias nasçam (ou, pelo menos, nasçam apenas) em que se sente acima da lei - mas tenho a certeza de que se alimentam com a lei. Li que uma das causas da violência sistémica nas esquadras norte-americanas se deve ao serem as esquadras resultado da evolução, ou adaptação, das brigadas de captura de escravos foragidos. Há uma cultura corporativa que persiste mesmo quando se mudam os regimes, mais ainda quando as corporações se regem por valores e políticas locais, como nos EUA (no postal no sardinha falo na responsabilidade de Trump por esta violência, e tal responsabilidade inclui o ter revogado decretos da admin. Obama que permitiam uma vigilância federal às esquadras visando normalizar procedimentos e abolir comportamentos violentos)
É um tema muito complexo, e desconfio que ainda falaremos nele durante muito tempo :(
Beijos 


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