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Sinto-me sem paciência.
Sem paciência para os atropelos perpetrados por activistas de papel, por opinadores de ouvido, por escrevedores da moral e dos bons costumes. E sem paciência para atropelos ao Português - às outras Línguas também, mas uma pessoa não pode preocupar-se com tudo, para isso temos os activistas de papel.
Tudo começou ao ver um noticiário da hora de almoço. Pouco liguei, a falta de paciência para tal já é antiga. Mas entre o olhar e o não ver atentei numa pequena reportagem sobre as manifestações de ontem pelo Clima. E vi os manifestantes de muito mundo, às manifestações chegados de perto e de longe, a empunharem cartazes e bandeiras e máscaras e balões e até balões gigantes a fingirem-se a Terra. Estremeci, saiu-me um "mas que incongruência!" e uma voz ao meu lado, compreensiva, respondeu "mas porque não hão-de usar os balões e os balões gigantes? Já existem, já estão feitos!" Claro que sim, já estão feitos. E se o que já está feito, recorrendo a processos produtivos de que discordo ou a materiais cuja utilização deploro, for por mim comprado só porque já está feito, irá esgotar e eu estarei a dizer que há mercado para mais - e o produtor vai continuar a produzir. A menos que os activistas de papel exijam a sua proibição e os legisladores acedam, claro, porque é sempre mais fácil alguém assumir responsabilidade pelas nossas escolhas. Mas isso não interessa nada, até porque eu nem sou presença em manifestações... E não sou porque sei o que reivindico, mas não sei o que reivindica o vizinho do lado - e se não forem claros, não contem comigo para fazer número, não tenho paciência. Ainda para mais um número em que tantos invocam o Ambiente e as alterações climáticas para multar, proibir, ameaçar sem que apresentem soluções práticas, exequíveis e consequentes. Paciência pouca, tolerância zero!
De novo a notícia, e noto que em Paris a manifestação correu mal. Previsivelmente. Ninguém que organiza estas manifestações pensa nos infiltras e nas consequências, ainda para mais quando em marcha tantas contestações violentas? Ou achará que os riscos valem a pena e que não há outra forma de manifestar a discordância e a exigência que não em grandes manifestações de rua cheias de cartazes e bandeiras e balões? Ghandi ia de mãos nuas. Acho difícil alguém carregado passar despercebido numa multidão de mãos nuas, mas lá está, eu não vou a manifestações de rua.
No mesmo noticiário percebi que amantes portugueses de blocos de construção de uma marca específica falavam dos displays presentes na exposição que decorre nas Caldas da Rainha. Display? Não poderiam usar cenário, imagem, figura, criação, até? Parece que não, display aparenta ser o termo adequado para portugueses falarem com portugueses aqui em Portugal. E no fim da exposição suponho que irão jantar umas bifanas ali num dos bistrot da zona... haja paciência.
Saí das notícias e passei os olhos no Sapo e nos blogues. Descobri que ontem foi dia de qualquer coisa, anteontem foi dia de outra coisa qualquer, provavelmente amanhã também o será. Procuro no Calendarr, e descubro que ontem foi Dia Internacional da Paz, Dia Mundial da Doença de Alzheimer, Dia Mundial da Gratidão, Dia de São Mateus, Dia do Software Livre, Dia Internacional da Limpeza Costeira, Dia Internacional do Mini-golfe, Dia da Guarda Nacional Republicana. Provavelmente até foi dia de mais coisas, mas o sítio indicava apenas estes oito motivos para celebrar. Pelos blogues descobri que, além daqueles que falam quando sentem vontade, há quem fale dessas coisas no dia para elas assinalado e há quem fale de quem não fala dessas coisas no tal dia... e pasmo. Desconheço a relevância de algumas destas efemérides, e acredito que algumas me continuarão irrelevantes mesmo após explicação. Mas as evocações serão sensibilização e, no limite, serão inócuas, portanto que cada um celebre como e o que lhe aprouver mesmo que apenas uma vez por ano ou apenas uma vez por vida. Simplesmente não percebo, e entendo até como atropelo da liberdade, que se questione ou julgue o cidadão que não evoca celebra comemora o Dia de qualquer-coisa. Como se quem se interessa tenha obrigação de se expressar quando manda o calendário. Como se quem não se manifesta sentisse menos a importância de alguns dos dias e motivos assinalados. Como se todos os que escrevem e celebram e evocam pensassem no assunto fora das agendas brilhantes e visíveis das redes sociais. Mas enfim, há quem não consiga passar sem atirar pedras pelo muro do vizinho e eu estou também sem paciência para lapidadores.
E estou sem paciência para romanceadores da história e dos factos, para pensadores de frases célebres, para músicos de dois acordes e um nanana, para escrevedores de frases feitas, para viaipis e fotochopes e sélfestimes... estou sem paciência para gente que se finge. Mas deixarei o assunto para o dia internacional do escaravelho. Agora estou sem paciência.
Mural de Philippe Hérard (Paris, França)
foto de Alain Andre em Street Art Utopia
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