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[Tema #14: Não nasci para isto]
A vida faz-se
A primeira memória que tenho é a do corpo em dor, excruciante. Senti a pele repuxada, os músculos truncados, os membros doendo a cada bater do meu fraco coração. Com o tempo a dor foi diminuindo, ou talvez que me tenha habituado... mas um dia deixou de doer. Penso que foi quando percebi que me amavam. Ou talvez tenha sido da água, sei agora que a hidroterapia é benfazeja; mas não o sabia então, e limitei-me a usufruir os momentos que me foram oferecidos. A música era indistinta, mas era música. Entranhou-se-me na alma, o corpo movendo-se suavemente no embalo, música e dança elevando-me acima de qualquer memória. Beethoven e Mozart, claro, como não?
O tempo passou, a memória esmaecida e a dor olvidada, e comecei a sentir quem me rodeava, intentei reagir às tentativas de comunicação - eu, que até ali me mantivera inconsciente dos outros, buscava agora o seu contacto.
Um dia atrevi-me a sair pelo meu pé, sem auxílio. Atirei-me de cabeça, ignorando a reprimenda de quem dizia ser cedo. Estava cansada, a escuridão nada mais tinha para mim - ansiava a luz, mesmo que apenas ao fundo do túnel. Não importava se estava bem ou estava mal, não havia sido feita para ficar parada. E assim me lancei de corpo inteiro. Mas o mundo, inclemente, acolheu-me com violência.
Caramba! Sete meses e meio num útero e recebem-me com uma palmada?! Não! Não nasci para isto! Vou em busca de outras memórias! Onde os braços de quem me embalou?!
Nota da autora: Depois do Aviso, o parto. Não foi a ferros, mas quase... o do texto. O meu foi rápido, diz quem sabe.
Nota à roda: o AO90 não nasceu para isto. Nem para nada.
imagem recolhida no West Side
Vídeo: Fala do Homem Nascido
Adriano Correia de Oliveira (1970)
Letra de António Gedeão, Música de José Niza
[Desafio de Escrita by Pássaros]
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