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Confusões entre obra e obreiro

considerações sobre censuras várias

por Sarin, em 24.10.19

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Tenho este postal em rascunho há meses. Melhor pensando, tenho este postal em rascunho desde uma altura em que apenas escrevia postais em viagens, daqueles postais em papel, ilustrados, que mais não pretendiam do que ser lembrança. Mais concretamente, tenho este postal em rascunho desde 2009. 

Assistia a um concerto de Amy Winehouse num qualquer canal, e notei que a cantora estava ausente, desequilibrando-se constantemente e desafinando notas que normalmente dominaria. Muitos outros tiveram assim comportamentos, até em palcos à minha frente, mas por desconhecido motivo apenas naquele momento me surgiu a dúvida: deveria eu comprar discos, assistir a concertos, sequer ouvir as músicas de quem se auto-destruía e mergulhava nas drogas e no álcool até em pleno palco?

Pouco demorei a perceber que, embora lastimando Amy, eu não era sua amiga, não a conhecia, não tinha qualquer influência no seu círculo - e que, por isso mesmo, ao deixar de comprar o seu trabalho apenas por não concordar com a vida que levava e transportava para o palco, estaria a censurar uma opção que era dela, ainda que o fizesse por a querer saudável. Acaso fosse espectadora de tal concerto, eventualmente poderia reclamar, exigir devolução do meu dinheiro por quebra de contrato dada a fraca actuação, poderia até escrever cartas e artigos iracundos por me sentir defraudada com tal prestação ou apreensiva pela saúde da artista. Mas o consumo de álcool e outras drogas eram opções pessoais, e a minha relação com Amy não era pessoal, era artística porque ela a artista e eu a apreciadora, e por esta era também comercial, ela a fornecedora de produtos artísticos (embora por interpostas pessoas) e eu a cliente. Reflectir nas nossas relações artísticas e comerciais o meu desacordo com as suas opções pessoais seria boicote e censura moral.

Não boicotei nem censurei. Quando Amy morreu voltei a colocar-me a questão e obtive a mesma resposta, portanto o assunto ficou arrumado: repudiar o artista e a sua obra devido à discordância com o seu modo de vida é censurar as suas escolhas. Obra é trabalho, indivíduo é personalidade - e são questões distintas.

 

Devo afirmar que nem sempre pensei assim. Tempos houve em que as atitudes públicas de alguém me condicionariam a vontade de conhecer o seu trabalho, especialmente na literatura pois que muito forte transmissor de conceitos e preconceitos. Na verdade, continuam a condicionar; mas iniciar a descoberta da obra com algumas resistências ou permanecer dela ignara por discordar das opções do indivíduo são caminhos muito distintos. E lembro-me sempre do machismo, do racismo e do imperialismo do homem que disse "a democracia é a pior forma de governo, com excepção de todas as outras", um grande democrata que nem por isso atendeu aos direitos humanos antes dos 65 anos. Continuo a ter dúvidas se atendeu depois, mas sabemos que quase octogenário ganhou um Nobel pelos seus dons de "oratória em nome dos mais elevados valores humanos". Serve-me esta história de bitola, e adiante.

 

Quando surgiu o movimento #metoo a questão voltou a pairar-me na ideia. E coloquei-me na posição de solidária com as vítimas quando, quase simultaneamente, percebi que poderia haver vários tipos de vítimas, incluindo as vítimas de falsas denúncias e as vítimas de descontextualizações, aquelas que em tempos tiveram algumas atitudes vistas como normais à época mas das quais hoje se fazem outras leituras. Como fui comentando os linchamentos públicos sem entrar no julgamento dos actos que lhes davam origem, aos tribunais o que é dos tribunais, acabei por deixar passar a onda do postal mantendo a minha opinião: trabalho e homem devem ser apreciados e avaliados em planos distintos. Uma coisa é recusar determinado actor, realizador, produtor por querer proteger a restante equipa de tal personalidade ou, o mais comum, por ter medo da reacção dos espectadores. Outra, negar-lhe o mérito, retirar-lhe prémios e distinções que a sua obra merece. E aos tribunais o que é dos tribunais.

Mas em Fevereiro deste ano o tema voltou a bailar-me na memória, e foi quando tecnicamente o coloquei em rascunho. Quero dizer, apenas colei uma ligação a partir de onde desenrolaria o tema - um artigo sobre o afastamento de Bryan Singer dos BAFTA, na sequência de denúncias de abusos sexuais. Dei-lhe o título, colei a tal ligação... e nunca mais lhe peguei. Em Maio deparei-me com um artigo de opinião sobre a deslocação de Louis CK a Portugal, e pela primeira vez encontrava alguém que, deixando aos tribunais o que é dos tribunais, separava o homem e a obra no meio desta enxurrada benfazeja mas certamente com inocentes arrastados na lama, como em todas as enxurradas. Mas não me competia separar lama e homens, apenas obra e obreiro. E reavaliei a minha posição.

Reavaliar mais não é do que refazer o trajecto para detectar alterações na paisagem. Acrescentei com mais ênfase o profissional, já não apenas o artista. Mas, sendo embora o homem uno com a sua arte ou engenho, continuei a achar, continuo a achar, que obra e obreiro constituem mundos separados. Posso amar a obra e desprezar o obreiro, e relembro a bitola churchilliana.

Analisei também a posição das academias que entregam tais prémios... Dizerem que os prémios servem para distinguir os melhores profissionais mas depois dependerem essa distinção (ou outras) de "valores" ["Bafta considers the alleged behaviour completely unacceptable and incompatible with its values"] apenas exsuda um moralismo muito flutuante e transforma os prémios que deveriam ser de mérito em alguma coisa que não é nem deixa de ser. Como faremos com essa coisa do mérito se lhe metermos a moral como padrão - e que moral? Vamos cortar a História, como perguntou Dame Judy Dench a propósito de Kevin Spacey?

Outros assuntos mais prementes surgiram, e o postal continuou em rascunho... até que surgiu a polémica com um dos nomeados para o Nobel da Literatura, Peter Handke. Surgiram os apoiantes e os opositores da sua obra, mas as grandes oposições à atribuição do Nobel passaram pela avaliação do seu apoio a Milosevic - passaram, portanto, pelas suas atitudes políticas e não pelas suas capacidades artísticas. O homem a ser confundido com a sua arte, com a sua obra - e atacou-se a arte, atacou-se o artista, atacou-se o profissional, atacou-se o mérito, porque se discorda do homem ou porque se desgosta das suas opções ou porque se lhe vê imoralidade. Não apenas se relevou o homem em detrimento do artista, que é afinal o que está em causa, como se tentou que outros lhe negassem mérito por motivos em nada relacionados com a sua arte ou com a sua obra.

E isto, à semelhança do que vinha ponderando desde Amy, nada mais é do que censura. É negar ao artista, ao profissional, o direito de o ser porque se discorda do seu carácter ou se considera que as suas opções são moralmente condenáveis. É o querer impor aos outros o seu próprio paradigma, condenando, eliminando até, todo o trabalho que não seja fruto dos eleitos.

Defendo o direito ao boicote, mas peço que se pensem as causas de tais boicotes. E peço mais, peço que não avaliemos o mérito pela personalidade, a obra pelo indivíduo, não os coloquemos sequer no mesmo plano ou acabaremos mutilando todos os santos nos seus pés de barro. Mais uma vez, a bitola churchilliana.

 

Ainda sobre esta questão das censuras, vi ser publicamente questionado o direito de um professor se pronunciar também publicamente sobre uma matéria da sua área, invocando como motivo para o seu (defendido pelo questionador) silêncio o ter estado esse professor ligado a um caso alheio à sua dissertação e sobre o qual não foi, até à data, acusado de qualquer crime - nem sequer no artigo em que se pedia o seu silêncio e até o seu afastamento dos holofotes, num apontar de dedo a quem lhe deu espaço ou visibilidade. Declarado tal comportamento como imoral, no entender de quem questionou seria isto suficiente para substantivar o congelamento do seu direito de expressão.

Basicamente, a mesma questão desde Amy, moralidade versus arte e engenho, mas exponenciada a outro nível. Se nos casos de Amy e de Louis CK a censura passaria por um boicote pessoal e nos casos de Singer e de Handke pela não atribuição de um prémio, já no caso deste profissional a censura passaria por lhe cercear direitos básicos e constitucionais.

Entendamo-nos:

1. No nosso código penal, imoralidade não é sinónimo de ilicitude.

2. Num estado de direito, não podemos invocar a presunção de inocência para uns e negá-la a outros.

3. Se defendemos a presunção de inocência - que nada tem a ver, que não impede e que deve mesmo ser concomitante com o exigir recursos, celeridade e seriedade à Justiça - defendemos que um indivíduo não perde o seus direitos de cidadania quando alvo de suspeitas, muito menos por questões morais.

4. Se aceitamos este princípio, então ao questionarmos o direito que um indivíduo tem em expressar opinião, ainda para mais na sua área de trabalho, estaremos a fazer exactamente o quê senão a tentar encontrar fundamento para o censurar? 

 

Não gostar do indivíduo e discordar das suas opiniões não é o mesmo que questionar o seu direito a expressá-las, mesmo que se acredite o indivíduo culpado de um crime pelo qual não foi acusado. Apoiar artigos de tal professor não é o mesmo que apoiar as suas opções pessoais. Tal como ler Handke não é apoiar Milosevic ou como rir com Louis CK não é aplaudir a sua vida sexual ou como ouvir Amy Winehouse não é fazer uma apologia do vício. E tal como enaltecer a capacidade de liderança de Churchill durante a Segunda Guerra Mundial não é subscrever a repressão colonial que então defendia. E muito mal vai a democracia quando não se percebem estas diferenças.

 

Nota 1: Não tenho quaisquer: interesses sobre os bens materiais ou imateriais, ligações familiares, partidárias ou outras a nenhum dos referidos - li um livro de Handke, gosto de Amy, não aprecio CK Louis, dos filmes produzidos por Singer guardo de memória (e que memória!) Os suspeitos do Costume e do professor apenas subscrevo a opinião que defendeu num artigo que motivou o tal artigo onde se pede o seu silêncio.

Nota 2: Não faço ligação ao artigo que invoco pois para o fazer teria de desmontar, esmiuçar tudo o que nele foi dito, incluindo a indignação que o motivou. Não vale a pena.

Nota 3: Tenho a sensação de que repito demasiadas vezes obra obreiro... mas o postal é longo, debruça-se exactamente sobre tais temas e eu estou bastante desinspirada. Desculpem qualquer coisinha.

imagem: Chema Madoz

[Cuidemos de todos cuidando de nós: Etiqueta respiratória. Higiene. Distância física. Calma. Senso. Civismo.]
[há dias de muita inspiração. outros que não. nada como espreitar também os postais anteriores]

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lançado às 20:45

Onde ideias-desabafos podem nascer e morrer. Ou apenas ganhar bolor.


Obrigada por estar aqui.



22 comentários

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De Sarin a 25.10.2019 às 00:50

E isto vale para as artes, para as letras, para a política, para as misses, até! Avaliar a pessoa não é avaliar a obra, e a inversa também é verdadeira.


Churchill é um expoente de contradições, uso-o como pára-raios :)
Quando falei do Handke lembrei-me do Saramago. E do Naipaul. E do Vargas Llosa. Mas nesses tempos as censuras eram menos evidentes... e foram há escassos anos. É assustador.
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De /i. a 25.10.2019 às 01:02

Exactamente.
Recordo as peripécias do Cavaco Silva e do Sousa Lara praticadas contra o Saramago. Ocupavam cargos políticos e não deviam utilizar essas funções para manifestar os seus gostos ou preconceitos.
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De Sarin a 25.10.2019 às 01:34

Exacto!
Mas falava de forma ainda mais lata: o não gostar da pessoa política não impede que lhe aprecie um ou mais projectos políticos. E não impede que lhe reconheça mérito em algumas abordagens.

[a palavra a quem a quer]




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