Imagem do blog - Gaffe
cabeçalho sobre foto de Erika Zolli
Saltar para: Post [1], Comentários [2], Pesquisa e Arquivos [3]
Desde há algum tempo que tenho este postal mentalmente rascunhado. Nasceu pela eutanásia mas, e nem de propósito, será dado à luz pelo COVID-19.
Defendo uma democracia muito mais participativa, e defendo-o há muito e de muitas formas. As nossas elites políticas, que de elites pouco terão mais do que a imunidade e a impunidade, são incapazes de ouvir os eleitores e, pior, são incapazes de falar claramente com os eleitores, de ver os eleitores, de sentir os eleitores. Excluo, obviamente, os homens-espectáculo nados e criados nas televisões, para quem os eleitores são o pão-nosso que, mastigado, os modela. E, destes, excluo o omnipresente Marcelo, pois que nasceu modelado.
Voltando à nossa democracia, entendo que os cidadãos podem e devem ter mais participação directa nas decisões governativas, nomeadamente nas adesões a tratados internacionais, nas eleições de órgãos reguladores e outras cúpulas, e nas definições das políticas gerais. Não são necessárias competências específicas para se ser deputado pelo mesmo motivo de não serem necessárias competências específicas para se ser cidadão - e defendo que todos temos o direito de decidir quem governa o quê.
No entanto, há decisões que requerem competências específicas. Há matérias que requerem conhecimento técnico, que não são questão de querer e, muito menos, de crer. A Saúde Pública é uma delas.
Quando na AR se resolveram a aprovar a inclusão de algumas vacinas no Plano Nacional de Vacinação contra a opinião da DGS, respinguei e resmunguei com tal usurpação de funções, embora ainda percebesse o objectivo da manobra - poupar custos a muitas famílias. Mas pais e professores fazerem petições pelo encerramento de escolas porque têm receio? Então mas as crianças e jovens, enquanto grupo etário, não são os mais resistentes? E os casos de risco de exposição não estão sob vigilância? E a DGS não está a acompanhar o mapa evolutivo? Mas estamos doidos?! Já agora, quem fica com os petizes - os avós, muitos dos quais na faixa etária de maior risco? Tenham juízo e atentem nas medidas de higiene - a Alice Alfazema deixou pistas bem-humoradas -, tenham decência e cumpram as regras de auto-isolamento se suspeitarem de risco de exposição, tenham calma e deixem as questões técnicas aos técnicos de saúde - que não estão nem nas associações de pais nem na Assembleia da República!
Da mesma forma que há decisões que apenas devem ser tomadas por técnicos, há outras que não deveriam incumbir a ninguém que não o próprio. Refiro-me a todas as questões do exclusivo foro individual e, especificamente, à eutanásia. Sim, sei que ninguém é uma ilha e que a minha vida e a minha morte têm ramificações nas vidas de outros. Mas continuam a ser a minha vida e a minha morte, e as opções que tomo são da minha responsabilidade. Ninguém tem o direito de me impor se devo viver ou morrer - nem sequer os tais médicos que eventualmente farão parte das estapafúrdias comissões de avaliação, das quais falarei noutro postal. E muito menos esse direito terão o meu vizinho e o tasqueiro da rua de baixo, pessoas simpáticas e esclarecidas mas às quais não reconheço qualquer poder de decisão na minha vida privada. Ou na minha privada morte.
Há matérias que, pura e simplesmente, não são referendáveis. A eutanásia* e o aborto, por exemplo, porque apenas dizem respeito à vida do próprio**, ou a escravatura e a pena de morte, porque dizem respeito à vida de terceiros assim gerida por segundos. No fundo, a mesma questão.
Não quis entrar em grandes discussões sobre as matérias peticionadas, não era objectivo do postal. Mas queria deixar bem patente o meu repúdio por estas manifestações de democracia participativa, que considero completamente desajustadas.
Descubram os chapéus que podem usar, gentes destas petições, porque chapéus há muitos... mas estes não me parecem assentar-vos bem.
* Voltarei à Eutanásia, assim o havia dito à MJP e ainda tenciono cumprir.
** Antes de me atirarem o conceito de "valor da vida humana desde a concepção", que fique claro que apenas reconheço como Ser os fetos viáveis em incubadora, por muito que acarinhe os embriões e os fetos em desenvolvimento. Mas sem órgãos vitais não passa de projecto, e a incubadora humana é que decide se é incubadora ou mãe. Não é questão de fé, é matéria de facto.
A subscrição é anónima e gera, no máximo, um e-mail por dia.