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Os factos agonizam

por Sarin, em 15.04.20

B24.jpg

Passeava pelos Últimos Posts, e deparei-me com isto:

China “deve ser processada sob a lei internacional” por causa dos seus perigosos hábitos alimentares

O mundo não pode continuar a ignorar o risco das exóticas (para ser subtil) práticas alimentares dos asiáticos. Sopa de morcego é um dos pratos mais comuns na China, mas nos hábitos alimentares orientais consta o cão, o rato, o cérebro de macacos vivos, insectos, aranhas, (...)

 

Li este bocadinho e pensei se valeria a pena comentar ou não.

Como explicar que exótico nada tem de subtil porque exótico significa estrangeiro?

Como explicar que sopa de morcego não apenas não é comum na China como nem sequer chinesa é?

Como explicar que ratos e ratazanas são comidos nos mesmos países que a sopa de morcego, ou seja, Vietname, Tailândia e atéTaiwan mas não China?

Como explicar que o cérebro de macacos vivos assim que retirado do crânio passa a ser de macacos mortos - e que o vapor que se vê no Indiana Jones e o templo perdido é do gelado e não da respiração do macaco decapitado?

Como explicar que em algumas regiões da China comem o cérebro de macacos tal como por cá comem a mioleira do cabrito e do borrego? Ou que as aranhas estão para eles como o camarão para nós? 

Como explicar que o consumo de carne de cão está para muitos chineses como as touradas estão para muitos portugueses - uma tradição a eliminar? Ou que muitos de nós comemos vacas - que na Índia são sagradas ?

Como explicar a alguém tão cheio de certezas...

... a alguém que nem verifica aquilo que publica

... que os chineses e os vietnamitas e os tailandeses e os indonésios e os japoneses e os filipinos vivem todos para aquelas bandas do Mundo, têm todos culturas milenares mas não são a mesma cultura, não são a mesma cultura, não são a mesma cultura?!

 

Aquele título e o pequenino exemplo são um amontoado de preconceitos. Mas dei o benefício da dúvida, poderia tratar-se de um pobre crente que come tudo o que lê e vê nas redes sociais, mesmo que alguns jornais desmintam e voltem a desmentir tais "notícias". Por isso, abri o postal e fui ao blogue. Para me deparar com a continuação:

(...), o Pangolim. Enfim um conjunto repugnante de "iguarias", que são uma verdadeira ameaça para toda a humanidade.

Enquanto não houver um tribunal que julgue as consequências das práticas alimentares asiáticas que se têm revelado perigosas para o mundo, estaremos sempre à mercê do surgimento de vírus que matam milhares de pessoas e destroem economias.

Em meados da década de 2010, os morcegos foram a origem de outra doença respiratória semelhante à Sars: a Síndrome Respiratória do Oriente Médio, que afectou menos pessoas mas foi mais letal. 

Quanto a este novo coronavírus - baptizado de Covid-19-19 (..)

 

Porra! Que entenda que as práticas alimentares chinesas e as práticas alimentares asiáticas são tudo a mesma coisa, vá, eu ainda aceito a tacanhez e a confusão. Que tenha a opinião de que são perigosas para o mundo e que seja necessário um tribunal para julgar os hábitos alimentares de cada país, entre pezinhos de coentrada, tripas à moda do Porto e percebes eu ainda engulo. Mas estava capaz de jurar que a Equipa do SAPO teve, durante semanas, um texto pespegado na área de gestão de blogues a dizer algo parecido com

Como autores, temos o dever de ser rigorosos com a informação que veiculamos sobre a Covid-19

Porque falará esta gente com poupa e circo estância daquilo que aparentemente não sabe, que não se dá ao trabalho de verificar, que não tenta sequer avaliar antes de publicar?!

Em 2009 a Pandemia foi de Gripe A, Gripe A, causada pelo vírus H1N1, vírus H1N1, que não é um coronavírus. Mas a Gripe A é uma zoonose - ligada aos suínos, suínos, não aos morcegos. E surgida na América do Norte, América. A SARS (Síndrome Respiratória Aguda Severa) é uma zoonose ligada a morcegos, morcegos que não são alimento, e surgiu em 2002 na China. Já a MERS (Síndrome Respiratória do Médio Oriente) é uma zoonose ligada aos dromedários, dromedários, e surgiu em 2012 em países do Médio Oriente - mas não por os comerem.

Este novo coronavírus chama-se SARS-CoV-2, SARS-CoV-2; Covid-19 é a doença, Covid-19 é a doença  provocada pelo coronavírus SARS-CoV-2.

Irra!

A uns dá para pararem na estrada para ver os acidentes, a mim dá-me para ler textos cheios de contradições, incorrecções e alegações absurdas. Com um desprazer mórbido, continuei a ler, talvez que este texto nada tivesse com aquilo dos Prognósticos antes do jogo. Talvez.

Mas a pedra-de-toque do argumento e que me apeteceu atirar à cabeça do autor de tal texto foi

Tudo isto [os excertos acima e mais um conjunto de frases sobre "o mercado de Wuhan", animais selvagens, pangolins e morcegos] são mais do que evidências que é preciso julgar a China nos tribunais internacionais, entre outras responsabilidades por não controlarem as práticas alimentares que violam o Regulamento Sanitário Internacional (...)

 

Terá quem isto escreveu alguma vez lido o Regulamento Sanitário Internacional, ou saberá para que serve e ao que se refere?! Se leu, para que escreve um absurdo destes? Se não leu, porque menciona sequer tal diploma?! Não há pachorra! 

No parágrafo seguinte tinha um aplauso à Índia por apresentar queixa contra a China por crimes de guerra, um aplauso caído assim do nada pois todo o texto cirandava pelos hábitos alimentares e, subitamente, um parágrafo inteirinho retirado daqui. Sem umas aspas, sequer. Não percebi onde passou do garfo à baioneta, mas percebi a necessidade de visar a China, de acusar a China, de atacar a China fosse como fosse. E depois de tudo isto nada mais li - antes comer miolos de macaco vivo

 

Opinião é um conjunto de ilações sustentadas pela interpretação de factos, e se as interpretações podem variar, os factos são imutáveis. No entanto, postais como este são violação de factos, são adejar de falsas informações, são atentados à análise e ao raciocínio - em suma, são atentados à Opinião.

E o problema de postais como aquele de que falo nem é estarem cheio de falsidades nem é arvorarem ilações que não podem resultar daquilo que apresentam como factos, pois que deles desconexas. O problema de postais como aquele é serem o portentoso reflexo da mistura de falta de esclarecimento com a vontade de alardear certezas - reflexo, portanto, dos que, de crença em crença, acabam por aniquilar o rigor, desprezar o raciocínio e, finalmente, adorar quem gritar mais alto durante mais tempo.

Cada vez acredito mais que não aprenderemos grande coisa com esta pandemia.

 

Nota final: Já depois de ter escrito este texto, e em plena busca de ilustração, fui tentar perceber quem era o autor do postal. Diz que é jornalista. Do Económico. Maria Teixeira Alves. Tenham dó, porra!

 

imagem de Chema Madoz

 

[Cuidemos de todos cuidando de nós: Etiqueta respiratória. Higiene. Distância física. Calma. Senso. Civismo.]
[há dias de muita inspiração. outros que não. nada como espreitar também os postais anteriores]

Autoria e outros dados (tags, etc)

lançado às 01:53

Onde ideias-desabafos podem nascer e morrer. Ou apenas ganhar bolor.


Obrigada por estar aqui.



34 comentários

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De Sarin a 18.04.2020 às 14:58

Ensino a distância ou ensino a a distância? Porque se em vez de determinada for desconhecida, será ensino a uma distância ou continuará a ser ensino a distância? Nunca pensei nisso senão agora... Vê? Os seus postais, por favor! :)


Não sei se conhece, mas se conhecer não será mau revisitar - o Inquieta(a)titude e o artigo que destaca. Ambos :)
[o a fora dos parêntesis está a mais, mas no telemóvel o cursor não obedece...]





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De Ricardo Nobre a 19.04.2020 às 07:22

Obrigado pela referência; na verdade, não conhecia, mas a ignorância é facilmente curada em casos destes!


Hei-de escrever… só não sei se será nesta ou na próxima quarentena!
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De Sarin a 19.04.2020 às 08:58

Desde que não me faça ansiar pela próxima quarentena....
Entretanto, espero que vá passando bem esta.


Já agora, uma piada: os linguistas que, no início da COVID19 em Portugal, ficaram loucos com o chamar-se quarentena ao confinamento de 14 dias, devem estar apaziguados com estes 3 estados de emergência seguidos... estão quase atingidos os 40 dias.
Mas quarentena e quaresma não são a mesma coisa... e no entanto parecem. Oxalá ficássemos lavados de pecados :)
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De Ricardo Nobre a 19.04.2020 às 18:57

Sarin, acho que não foram linguistas. Devem ter sido «pessoas que estudaram linguística», porque quem está atento ao uso da língua já tinha percebido, há largos anos, que «quarentena» era um termo que apenas guarda em si a memória de este ter sido um período de quarenta dias. É o que se chama «por extensão de sentido», aproveitando uma palavra que já existe sem ser preciso inventar outra (como agora se faz — por ex., eu digo auto-retrato, não preciso de «sélfi»).


Estou a passar bem, como espero que a Sarin também. Sou dos privilegiados que pôde vir para casa sem corte no salário, e com mais trabalho do que tinha antes. Mas ainda mais privilegiado por viver sozinho — sem cão para passear, tenho de ser eu a ir à rua (satis)fazer necessidades básicas. E não tenho dúvidas de que vou ter saudades deste tempo, embora não o possa reconhecer em público nem dizer porquê. Até vou inserir agora aqui um boneco: . Dois: .
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De Sarin a 19.04.2020 às 19:46

Certamente não será por não ter de fazer a barba todos os dias :D:D:D
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De Sarin a 19.04.2020 às 09:02

Reparei agora que lhe falei no Inquiet(a)titudes e o remeti para o Misucartes. Não faz mal, a autora é a mesma :)
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De Sarin a 19.04.2020 às 09:03

Musicartes, desculpem-me o Ricardo e a Ana, a autora.
O artigo sobre García Marquez e os dicionários não foi engano :)

[a palavra a quem a quer]




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e uma viagem diferente



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