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cabeçalho sobre foto de Erika Zolli
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Passeava pelos Últimos Posts, e deparei-me com isto:
China “deve ser processada sob a lei internacional” por causa dos seus perigosos hábitos alimentares
O mundo não pode continuar a ignorar o risco das exóticas (para ser subtil) práticas alimentares dos asiáticos. Sopa de morcego é um dos pratos mais comuns na China, mas nos hábitos alimentares orientais consta o cão, o rato, o cérebro de macacos vivos, insectos, aranhas, (...)
Li este bocadinho e pensei se valeria a pena comentar ou não.
Como explicar que exótico nada tem de subtil porque exótico significa estrangeiro?
Como explicar que sopa de morcego não apenas não é comum na China como nem sequer chinesa é?
Como explicar que ratos e ratazanas são comidos nos mesmos países que a sopa de morcego, ou seja, Vietname, Tailândia e atéTaiwan mas não China?
Como explicar que o cérebro de macacos vivos assim que retirado do crânio passa a ser de macacos mortos - e que o vapor que se vê no Indiana Jones e o templo perdido é do gelado e não da respiração do macaco decapitado?
Como explicar que em algumas regiões da China comem o cérebro de macacos tal como por cá comem a mioleira do cabrito e do borrego? Ou que as aranhas estão para eles como o camarão para nós?
Como explicar que o consumo de carne de cão está para muitos chineses como as touradas estão para muitos portugueses - uma tradição a eliminar? Ou que muitos de nós comemos vacas - que na Índia são sagradas ?
Como explicar a alguém tão cheio de certezas...
... a alguém que nem verifica aquilo que publica
... que os chineses e os vietnamitas e os tailandeses e os indonésios e os japoneses e os filipinos vivem todos para aquelas bandas do Mundo, têm todos culturas milenares mas não são a mesma cultura, não são a mesma cultura, não são a mesma cultura?!
Aquele título e o pequenino exemplo são um amontoado de preconceitos. Mas dei o benefício da dúvida, poderia tratar-se de um pobre crente que come tudo o que lê e vê nas redes sociais, mesmo que alguns jornais desmintam e voltem a desmentir tais "notícias". Por isso, abri o postal e fui ao blogue. Para me deparar com a continuação:
(...), o Pangolim. Enfim um conjunto repugnante de "iguarias", que são uma verdadeira ameaça para toda a humanidade.
Enquanto não houver um tribunal que julgue as consequências das práticas alimentares asiáticas que se têm revelado perigosas para o mundo, estaremos sempre à mercê do surgimento de vírus que matam milhares de pessoas e destroem economias.
Em meados da década de 2010, os morcegos foram a origem de outra doença respiratória semelhante à Sars: a Síndrome Respiratória do Oriente Médio, que afectou menos pessoas mas foi mais letal.
Quanto a este novo coronavírus - baptizado de Covid-19-19 (..)
Porra! Que entenda que as práticas alimentares chinesas e as práticas alimentares asiáticas são tudo a mesma coisa, vá, eu ainda aceito a tacanhez e a confusão. Que tenha a opinião de que são perigosas para o mundo e que seja necessário um tribunal para julgar os hábitos alimentares de cada país, entre pezinhos de coentrada, tripas à moda do Porto e percebes eu ainda engulo. Mas estava capaz de jurar que a Equipa do SAPO teve, durante semanas, um texto pespegado na área de gestão de blogues a dizer algo parecido com
Como autores, temos o dever de ser rigorosos com a informação que veiculamos sobre a Covid-19
Porque falará esta gente com poupa e circo estância daquilo que aparentemente não sabe, que não se dá ao trabalho de verificar, que não tenta sequer avaliar antes de publicar?!
Em 2009 a Pandemia foi de Gripe A, Gripe A, causada pelo vírus H1N1, vírus H1N1, que não é um coronavírus. Mas a Gripe A é uma zoonose - ligada aos suínos, suínos, não aos morcegos. E surgida na América do Norte, América. A SARS (Síndrome Respiratória Aguda Severa) é uma zoonose ligada a morcegos, morcegos que não são alimento, e surgiu em 2002 na China. Já a MERS (Síndrome Respiratória do Médio Oriente) é uma zoonose ligada aos dromedários, dromedários, e surgiu em 2012 em países do Médio Oriente - mas não por os comerem.
Este novo coronavírus chama-se SARS-CoV-2, SARS-CoV-2; Covid-19 é a doença, Covid-19 é a doença provocada pelo coronavírus SARS-CoV-2.
Irra!
A uns dá para pararem na estrada para ver os acidentes, a mim dá-me para ler textos cheios de contradições, incorrecções e alegações absurdas. Com um desprazer mórbido, continuei a ler, talvez que este texto nada tivesse com aquilo dos Prognósticos antes do jogo. Talvez.
Mas a pedra-de-toque do argumento e que me apeteceu atirar à cabeça do autor de tal texto foi
Tudo isto [os excertos acima e mais um conjunto de frases sobre "o mercado de Wuhan", animais selvagens, pangolins e morcegos] são mais do que evidências que é preciso julgar a China nos tribunais internacionais, entre outras responsabilidades por não controlarem as práticas alimentares que violam o Regulamento Sanitário Internacional (...)
Terá quem isto escreveu alguma vez lido o Regulamento Sanitário Internacional, ou saberá para que serve e ao que se refere?! Se leu, para que escreve um absurdo destes? Se não leu, porque menciona sequer tal diploma?! Não há pachorra!
No parágrafo seguinte tinha um aplauso à Índia por apresentar queixa contra a China por crimes de guerra, um aplauso caído assim do nada pois todo o texto cirandava pelos hábitos alimentares e, subitamente, um parágrafo inteirinho retirado daqui. Sem umas aspas, sequer. Não percebi onde passou do garfo à baioneta, mas percebi a necessidade de visar a China, de acusar a China, de atacar a China fosse como fosse. E depois de tudo isto nada mais li - antes comer miolos de macaco vivo!
Opinião é um conjunto de ilações sustentadas pela interpretação de factos, e se as interpretações podem variar, os factos são imutáveis. No entanto, postais como este são violação de factos, são adejar de falsas informações, são atentados à análise e ao raciocínio - em suma, são atentados à Opinião.
E o problema de postais como aquele de que falo nem é estarem cheio de falsidades nem é arvorarem ilações que não podem resultar daquilo que apresentam como factos, pois que deles desconexas. O problema de postais como aquele é serem o portentoso reflexo da mistura de falta de esclarecimento com a vontade de alardear certezas - reflexo, portanto, dos que, de crença em crença, acabam por aniquilar o rigor, desprezar o raciocínio e, finalmente, adorar quem gritar mais alto durante mais tempo.
Cada vez acredito mais que não aprenderemos grande coisa com esta pandemia.
Nota final: Já depois de ter escrito este texto, e em plena busca de ilustração, fui tentar perceber quem era o autor do postal. Diz que é jornalista. Do Económico. Maria Teixeira Alves. Tenham dó, porra!
imagem de Chema Madoz
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