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Manifestações e confinamento I

Postal 1 de uma série de 3, a publicar hoje

por Sarin, em 08.06.20

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Enquanto vivemos esta pandemia que nos confinou e ainda confina, têm eclodido por muito mundo manifestações contra o racismo e a violência policial, espoletadas pela morte de George Floyd mas, creio, devidas a todos os maus tratos e a todos os destratos sofridos na pele de outra cor, no formato de outros olhos, nos hábitos de outra etnia. [também abordo, noutra perspectiva, o tema destas manifestações aqui]

 

E há quem se insurja contra as manifestações e contra os manifestantes porque estão a violar a regra do distanciamento social.

É verdade, estão. E eu defendo o distanciamento desde o início. Continuo a defender, até provas que contrariem ser esta uma das melhores acções de contenção do vírus.

Tal como defendi e defendo que não podemos nem devemos estar presos em casa, desde que, e reforço este desde que, respeitadas as regras de distância, higiene e etiqueta respiratória (agora com máscara, assim a saibamos usar).

Também não aprecio manifestações de rua. Posição minha: sou um ser social que não aprecia multidões por reconhecer as dinâmicas de grupo e desconhecer as intenções do manifestante do lado, cada vez menos claras.

Não as apreciando, reconheço o peso que as manifestações podem ter na formação da opinião pública, na captação de atenção mediática, na pressão junto do poder político. Mas nem interessa se gosto ou reconheço validade às manifestações, estas ou outras - defendo o direito de manifestação, e é quanto basta para não me insurgir quando ouço falar nelas, mesmo em tempos de pandemia (desde que, cf. acima).

E defendo o respeito pelas orientações legais definidas para o nosso comportamento, pois que de base democrática e orientadas pelos Direitos Humanos.

Tanto como defendo o direito de objecção de consciência, o direito de resistência e a não legislada mas reconhecida desobediência civil, que nesta métrica de obedecer tem de haver pesos e contrapesos de justiça.

 

Entre estes sins e estes nãos, quase pareço dividida quanto às manifestações em plena pandemia... mas tenho as ideias inteiras e claras. Muito claramente, parece-me que o racismo é mais letal que a covid-19, aliás, parece que a própria covid-19 é também racista em algumas democracias. E, segundo as estatísticas, o racismo tem demonstrado ser, também ele, altamente contagioso.

Chegamos assim ao ter de escolher entre distanciamento social para aplanar a curva da covid-19 e ajuntamento social para aplanar a curva da racismo-XXI. Como, sequer, ter coragem de criticar uma ou outra opção, dizer o que deve ou não defender, como deve ou não sofrer, e quiçá morrer, cada um de nós? Quem for da cor certa que vista a pele dos outros antes de tossir, que a curva da covid-19 é premente e recente e a do racismo, latente e prevalente.

Não, eu não me manifesto nas ruas. Escolho outras formas de manifestação. Mas percebo quem sai à rua contra o racismo e a violência policial - ou melhor, percebo quem pacificamente sai à rua contra o racismo e a violência policial, porque vandalismo ou cartazes como "um polícia bom é um polícia morto" e "make racists afraid again" não, não percebo. E percebo quem teme as manifestações por causa da covid-19 - ou melhor, percebo quem teme pelo não cumprimento das regras de distanciamento social, porque as críticas à realização como "realmente, não se percebe porque é que a situação em Lisboa é tão grave" ou a negação do direito de manifestação por comparações com "festivais de música" e "reabertura de estádios de futebol" não, não percebo.

Tal como não percebo quem acha "um exagero, tanta manifestação" - um exagero é um ataque racista, mais ataques são demasiados exageros. Sem exagero, as reacções nas redes e as manifestações quase ubíquas estão a provocar mudanças reais nos EUA. A forma como os dirigentes reagem às manifestações também pode provocar mudanças, Trump que o diga.

 

Enfim, a covid-19 é questão de vida e de morte. Tal como são de vida e de morte as reivindicações destes manifestantes. E quem achar que podem ser adiadas para depois da pandemia que se fique sossegado a aguardar-lhe o fim, porque é este um daqueles raros casos em que calar é ficar do lado da solução e falar é ficar do lado do problema.

imagem recolhida em Postal

parte das críticas surgiram associadas a esta fotografia. o que estranho, dada a quantidade de manifestações e de fotos disponíveis.

[Cuidemos de todos cuidando de nós: Etiqueta respiratória. Higiene. Distância física. Calma. Senso. Civismo.]
[há dias de muita inspiração. outros que não. nada como espreitar também os postais anteriores]

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lançado às 08:30

Os factos agonizam

por Sarin, em 15.04.20

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Passeava pelos Últimos Posts, e deparei-me com isto:

China “deve ser processada sob a lei internacional” por causa dos seus perigosos hábitos alimentares

O mundo não pode continuar a ignorar o risco das exóticas (para ser subtil) práticas alimentares dos asiáticos. Sopa de morcego é um dos pratos mais comuns na China, mas nos hábitos alimentares orientais consta o cão, o rato, o cérebro de macacos vivos, insectos, aranhas, (...)

 

Li este bocadinho e pensei se valeria a pena comentar ou não.

Como explicar que exótico nada tem de subtil porque exótico significa estrangeiro?

Como explicar que sopa de morcego não apenas não é comum na China como nem sequer chinesa é?

Como explicar que ratos e ratazanas são comidos nos mesmos países que a sopa de morcego, ou seja, Vietname, Tailândia e atéTaiwan mas não China?

Como explicar que o cérebro de macacos vivos assim que retirado do crânio passa a ser de macacos mortos - e que o vapor que se vê no Indiana Jones e o templo perdido é do gelado e não da respiração do macaco decapitado?

Como explicar que em algumas regiões da China comem o cérebro de macacos tal como por cá comem a mioleira do cabrito e do borrego? Ou que as aranhas estão para eles como o camarão para nós? 

Como explicar que o consumo de carne de cão está para muitos chineses como as touradas estão para muitos portugueses - uma tradição a eliminar? Ou que muitos de nós comemos vacas - que na Índia são sagradas ?

Como explicar a alguém tão cheio de certezas...

... a alguém que nem verifica aquilo que publica

... que os chineses e os vietnamitas e os tailandeses e os indonésios e os japoneses e os filipinos vivem todos para aquelas bandas do Mundo, têm todos culturas milenares mas não são a mesma cultura, não são a mesma cultura, não são a mesma cultura?!

 

Aquele título e o pequenino exemplo são um amontoado de preconceitos. Mas dei o benefício da dúvida, poderia tratar-se de um pobre crente que come tudo o que lê e vê nas redes sociais, mesmo que alguns jornais desmintam e voltem a desmentir tais "notícias". Por isso, abri o postal e fui ao blogue. Para me deparar com a continuação:

(...), o Pangolim. Enfim um conjunto repugnante de "iguarias", que são uma verdadeira ameaça para toda a humanidade.

Enquanto não houver um tribunal que julgue as consequências das práticas alimentares asiáticas que se têm revelado perigosas para o mundo, estaremos sempre à mercê do surgimento de vírus que matam milhares de pessoas e destroem economias.

Em meados da década de 2010, os morcegos foram a origem de outra doença respiratória semelhante à Sars: a Síndrome Respiratória do Oriente Médio, que afectou menos pessoas mas foi mais letal. 

Quanto a este novo coronavírus - baptizado de Covid-19-19 (..)

 

Porra! Que entenda que as práticas alimentares chinesas e as práticas alimentares asiáticas são tudo a mesma coisa, vá, eu ainda aceito a tacanhez e a confusão. Que tenha a opinião de que são perigosas para o mundo e que seja necessário um tribunal para julgar os hábitos alimentares de cada país, entre pezinhos de coentrada, tripas à moda do Porto e percebes eu ainda engulo. Mas estava capaz de jurar que a Equipa do SAPO teve, durante semanas, um texto pespegado na área de gestão de blogues a dizer algo parecido com

Como autores, temos o dever de ser rigorosos com a informação que veiculamos sobre a Covid-19

Porque falará esta gente com poupa e circo estância daquilo que aparentemente não sabe, que não se dá ao trabalho de verificar, que não tenta sequer avaliar antes de publicar?!

Em 2009 a Pandemia foi de Gripe A, Gripe A, causada pelo vírus H1N1, vírus H1N1, que não é um coronavírus. Mas a Gripe A é uma zoonose - ligada aos suínos, suínos, não aos morcegos. E surgida na América do Norte, América. A SARS (Síndrome Respiratória Aguda Severa) é uma zoonose ligada a morcegos, morcegos que não são alimento, e surgiu em 2002 na China. Já a MERS (Síndrome Respiratória do Médio Oriente) é uma zoonose ligada aos dromedários, dromedários, e surgiu em 2012 em países do Médio Oriente - mas não por os comerem.

Este novo coronavírus chama-se SARS-CoV-2, SARS-CoV-2; Covid-19 é a doença, Covid-19 é a doença  provocada pelo coronavírus SARS-CoV-2.

Irra!

A uns dá para pararem na estrada para ver os acidentes, a mim dá-me para ler textos cheios de contradições, incorrecções e alegações absurdas. Com um desprazer mórbido, continuei a ler, talvez que este texto nada tivesse com aquilo dos Prognósticos antes do jogo. Talvez.

Mas a pedra-de-toque do argumento e que me apeteceu atirar à cabeça do autor de tal texto foi

Tudo isto [os excertos acima e mais um conjunto de frases sobre "o mercado de Wuhan", animais selvagens, pangolins e morcegos] são mais do que evidências que é preciso julgar a China nos tribunais internacionais, entre outras responsabilidades por não controlarem as práticas alimentares que violam o Regulamento Sanitário Internacional (...)

 

Terá quem isto escreveu alguma vez lido o Regulamento Sanitário Internacional, ou saberá para que serve e ao que se refere?! Se leu, para que escreve um absurdo destes? Se não leu, porque menciona sequer tal diploma?! Não há pachorra! 

No parágrafo seguinte tinha um aplauso à Índia por apresentar queixa contra a China por crimes de guerra, um aplauso caído assim do nada pois todo o texto cirandava pelos hábitos alimentares e, subitamente, um parágrafo inteirinho retirado daqui. Sem umas aspas, sequer. Não percebi onde passou do garfo à baioneta, mas percebi a necessidade de visar a China, de acusar a China, de atacar a China fosse como fosse. E depois de tudo isto nada mais li - antes comer miolos de macaco vivo

 

Opinião é um conjunto de ilações sustentadas pela interpretação de factos, e se as interpretações podem variar, os factos são imutáveis. No entanto, postais como este são violação de factos, são adejar de falsas informações, são atentados à análise e ao raciocínio - em suma, são atentados à Opinião.

E o problema de postais como aquele de que falo nem é estarem cheio de falsidades nem é arvorarem ilações que não podem resultar daquilo que apresentam como factos, pois que deles desconexas. O problema de postais como aquele é serem o portentoso reflexo da mistura de falta de esclarecimento com a vontade de alardear certezas - reflexo, portanto, dos que, de crença em crença, acabam por aniquilar o rigor, desprezar o raciocínio e, finalmente, adorar quem gritar mais alto durante mais tempo.

Cada vez acredito mais que não aprenderemos grande coisa com esta pandemia.

 

Nota final: Já depois de ter escrito este texto, e em plena busca de ilustração, fui tentar perceber quem era o autor do postal. Diz que é jornalista. Do Económico. Maria Teixeira Alves. Tenham dó, porra!

 

imagem de Chema Madoz

 

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lançado às 01:53

GIZ-Conjunto-6-Pecas-Giz-e-Apagador-D.jpg

Em 2007 Sócrates anunciou um programa de incentivo à aquisição de computadores portáteis e a descontos em Internet de banda larga - uma medida que incluía alunos e professores. Logo muitas vozes se levantaram contra o despesismo, o populismo e a excessividade da medida.

13 anos depois, surge uma pandemia, as crianças ficam em casa com as aulas possíveis à distância...

... e logo se levantam imensas vozes, muitas das mesmas, contra as aulas online porque há muitos alunos que não têm computador nem Internet.

O que apenas prova que há pessoas que nem pensam a longo prazo, como não pensaram em 2007, nem pensam que uma situação de excepção, como o actual confinamento, obriga a medidas de excepção.

Se tivesse sido dada continuidade à medida, hoje a questão das aulas online seria muito mais pacífica, pois nestes 13 anos todas aquelas coisas que assustam alguns pais e familiares (onde me incluo), como violações de privacidade, protecção do direito de imagem e outros assim direitos e perigos, estariam mais do que precavidos, prevenidos, treinados, educados.

Ou não, uma vez que muitos pais e familiares continuam a colocar as fotografias das criancinhas nas redes, malvada Escola que agora quer filmar o interior das casas e quiçá os irmãos que se aproximem do aluno!

 

Ainda sobre o presente ano lectivo, concordo que o Ministério da Educação deve tentar salvar o possível. Mas não o pode nem deve fazer por questões estatísticas. Muito menos o pode fazer colocando em risco docentes, discentes e demais pessoal - colocando em risco a sua a saúde, ou a sua privacidade.

Sim, que os pais coloquem a privacidade dos filhos em risco é mau, mas é responsabilidade dos mesmos.

O Estado é que não pode alinhar em tamanha irresponsabilidade.

Não é fácil sentir perdido um ano lectivo por razões a que somos alheios. Razões que nos transcendem e sobre as quais nada podemos.

Lembro-me do tempo que os alunos do 12.º Ano de Escolaridade perdemos em 1989. Não foi fácil nem agradável de suportar ou recuperar. Não se podia recuperar com aulas pela televisão, mesmo que no-las quisessem ministrar - ficámos sete longos meses entre exames adiados, é hoje, é na próxima semana, sem saber se no ano lectivo seguinte ingressaríamos no ensino superior, tentaríamos melhorar notas ou entraríamos no mercado de trabalho... E o ano lectivo seguinte começou e o primeiro trimestre terminou com os exames por fazer, é hoje, é na próxima semana... Não, não foi mesmo nada fácil de suportar. Também não foi simples de recuperar. Mas recuperou-se. E descobrimos que se recupera mais facilmente meio ano lectivo do que a saúde ou a privacidade.

As crianças e adolescentes recuperam mais facilmente o tempo perdido do que se recuperarão das assimetrias criadas por sistemas transversais a alunos agora em aprendizagem domiciliária.

Há que tentar chegar ao maior número de crianças possível, sim, e há que não deixar instalar-se a ideia de férias de Março a Setembro, para que não percam hábitos de estudo nem se percam do trabalho já desenvolvido. Mas como se pode avaliar equilibradamente crianças e adolescentes que, na mesma sala de aula, já evidenciam diferenças devido ao acompanhamento familiar e que, agora, dependem quase inteiramente desse mesmo acompanhamento?

E, depois, com aulas a algumas disciplinas sujeitas a exame e com notas a todas, onde fica a tal avaliação contínua?

Já nem falo da minha discordância com os sistemas de avaliação assentes em exames - por muito que digam que a avaliação é contínua, sabemos serem os testes e exames que dão nota aos períodos lectivos.

Não, não vou entrar por aí, o que está em causa não é a revolução do Sistema de Ensino, embora pudessem aproveitar para finalmente o promoverem.

O que está em causa é a continuidade de um ano lectivo tanto para crianças e adolescentes que vivem em casas  com tecnologia, espaço e conforto como para crianças e adolescente que vivem em zonas sem Internet, que vivem em casas com outros irmãos e com pais em tele-trabalho, que vivem há meses entre quatro paredes...

Todos merecem aulas, e todos merecem cuidados de prevenção. Há soluções, é coordená-las - as aulas por televisão são um passo possível, assim a TDT não lhes falhe.

A isto voltarei outro dia, que agora interessam soluções imediatas -

que, por serem urgentes, não têm de ser também imponderadas.

Outras soluções haverá, entre programas de licença aberta e redes várias - o Governo tem um gabinete da modernização tecnológica e o Estado tem uma Comissão Nacional de Protecção de Dados, em conjunto hão-de perceber mais disto do que eu. Trabalhem como equipa, organizem-se com os professores, sempre com os professores, e tenho a certeza de que surgirão as soluções para que os trabalhos lectivos prossigam o mais equilibradamente possível.

 

Mas avaliações, nestes tantos contextos, parecem-me válidas apenas para os censos.

 

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lançado às 17:53

Não me apetece escrever.

Ressuscito um postal que morreu submerso pelos posteriores. Não, não o vou reescrever. Estou doente e não me apetece. Espreitem, se quiserem - basta clicar na imagem.

Boa sexta-feira, bom fim-de-semana.

 

liberdade imprensa.jpg

 

 

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lançado às 13:49

Jornalismo, Pirataria, Cidadania

por Sarin, em 07.04.20

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Os cidadãos têm direito à informação.

O jornalismo tem de existir.

Os jornais precisam de financiamento.

Daqui resulta o óbvio: ou os cidadãos financiam directamente os jornais privados ou financiam-nos as empresas.

Claro que há o jornalismo financiado pelo Estado, embora lamentavelmente não seja difundido em papel. Defendo o jornalismo privado e o jornalismo financiado pelo Estado, mas blindado ao poder político - deste segundo tipo de jornalismo falei já noutros locais. E voltarei a falar. Agora quero centrar-me nos privados e numa carta aberta que por aí circula.

 

Pegar nas informações das agências noticiosas e colá-las nos jornais é coisa que qualquer indivíduo que saiba trabalhar com um rudimentar editor de texto consegue fazer.  Mas isto não é jornalismo, é corta-e-colaísmo. Fazer jornalismo requer recursos vários, e jornalismo de fundo, o de investigação, demora tempo e pode custar muito dinheiro. E até o corta-e-colaísmo tem de remunerar o cortador-e-colador.

Portanto, os jornais privados têm de conseguir vender o seu produto de forma a pagarem aos seus trabalhadores, a suportarem os seus custos - em suma, a financiarem a sua actividade. Quando não vendem, ou se vendem a interesses comerciais ou fecham a porta. Depender de interesses comerciais passa por vender publicidade - o que deve levantar alguns conflitos de interesses na hora de publicar eventuais notícias sobre o grande cliente; ou por ser adquirido por grupos financeiros - que têm interesses comerciais vários e que, ao contrário do grande cliente, têm poder para substituir uma redacção inteira, mesmo que todos finjamos que não.

A independência de um jornal passa, forçosamente, por esse jornal se bastar a si próprio - isto é, vender a sua notícia. E todos sabemos o que é preciso para vender uma notícia: sexo, lágrimas e sangue. Sim, bem sei que, dito assim, parece uma agressão sexual. Não é sexual, mas é também agressão, porque a tendência é procurar o sexo, as lágrimas e o sangue para fazer a notícia.

Poderá haver outras fórmulas de um jornal se financiar e manter independente, mas a única que consigo encontrar é uma forma de cooperativismo: eu e mais uns milhares pagamos-te uma anuidade, jornal, e ajudamos-te a manteres-te, e tu dás-nos notícias confiáveis e não sujeitas a outro interesse que não o informativo. 

 

Por tudo o que acima disse, estou solidária com os directores de jornais e revistas que, em carta aberta, se manifestam contra a pirataria das suas publicações - aquela coisa de receber e reencaminhar jornais em formato PDF.

Estou solidária e estarei porque...

... como eles, acredito que "é um atentado grave contra o trabalho dos jornalistas e contra a sustentabilidade das empresas de comunicação social".

... ao contrário deles, acredito que os actos de pirataria são um atentado contra qualquer empresa, contra qualquer cidadão e, em rigor, contra o Estado de Direito. 

 

Os directores vêm pedir-nos que combatamos tal pirataria fazendo-nos assinantes.

Mas não assumem o compromisso de não participarem em actos de pirataria: não nos dizem que deixarão de divulgar matéria em segredo de Justiça; não nos dizem que, antes de publicarem reclamações enviadas para esta ou aquela entidade, investigarão se estas foram mesmo enviadas, se chegaram ao destinatário e qual a sua reacção; não nos dizem que deixarão de publicar matéria sensível sem investigar a sua origem e que, publicando-a, a encaminharão também para as autoridades caso haja suspeitas de ilícito na sua obtenção ou no seu conteúdo; não nos dizem, enfim, que traçam uma linha ética entre "fonte" e "vale qualquer coisa para vender".

E, ainda assim, estou com eles. Porque acredito que a pirataria é abominável, mesmo que com carta de corso, e não o acredito apenas quando me dá jeito.

 

Mas sobram-me questões sobre esta matéria da pirataria dos jornais.

Quando compro um jornal em papel, ninguém me pergunta se apenas eu o lerei nem me coloca restrições a que o empreste, dê, deixe no banco de jardim ou na mesa da esplanada para que outros leiam.

Então, porque não poderei fazer semelhante com o jornal digital que pago? Sejamos francos, o jornal em papel não se fotocopia para emprestar, apenas passa de mão em mão. Já um documento digital é copiado dezenas ou centenas de vezes e em cada uma pode ser guardado o tempo que se quiser. Claro que percebo a troca de jornais em grupos fechados, uma espécie de mesa de café em que cada indivíduo chega com um jornal e os jornais circulam entre todos. Mas e quando os jornais saem da mesa, vão para onde?Já agora, esta pergunta vale para jornais e vale para outros documentos que estão sujeitos a direitos de autor.

Cada um de nós é responsável pelo que adquire e pelo que recebe. Se não costumamos emprestar livros ou jornais que não são nossos, porque reencaminharemos massivamente jornais e livros que não comprámos e para cuja disponibilização não contribuímos?

A facilidade em reencaminhar terá alguma responsabilidade, mas a verdadeira razão será, talvez, o não estarmos habituados a ver o trabalho intelectual e o produto digital como bens transaccionáveis, cuja produção envolve pessoas reais e de cuja venda essas pessoas reais dependem. É bom que mudemos esta nossa abordagem. Por todos os motivos, e também por causa desta coisa da pirataria.

 

E, entretanto, que estão a fazer os jornais para evitar serem pirateados, além de apelarem a que não reencaminhemos jornais assim recebidos?

Ao entregarem um código para acesso online, como fazem, parte do acesso fica restringido. Mas posso perfeitamente partilhar o meu código com o meu agregado familiar. Ou com 30 amigos, não é?

Para se protegerem, os jornais podem vender assinaturas com mais do que um acesso simultâneo - e bloquear as tentativas de acesso que excedam o contratadoualizado, emitindo alerta ao titular, podendo até bloquear a conta se tais tentativas forem frequentes (tudo isto devidamente definido e não sujeito a alterações arbitrárias durante a vigência do contrato - que pode diferir da anuidade). Ou podem promover assinaturas com limite de acessos, por exemplo. São opções que não têm de ser exclusivas e que talvez lhes permita chegar a mais clientes online. Mas que certamente evitam a partilha indiscriminada.

Já os jornais em formato PDF podem perfeitamente ser enviados com uma senha de segurança, previamente atribuída pelo próprio jornal e associada ao contrato, e o PDF ter um código identificativo da conta daquele exemplar. O assinante que partilhar indiscriminadamente o seu jornal sabe que correrá o risco de que os seus receptores partilhem com terceiros - o que pode fazer com que uma cópia vá parar às mãos de alguém que a reencaminhe para o jornal e este responsabilize cível e criminalmente o assinante. Mais uma vez, todas as opções, restrições e consequências devem estar devidamente explicitadas no contrato.

Não estou a inventar nada de novo. Todas as sugestões são viáveis, andam por aí e são usadas por empresas várias. E sei que, por cada sistema de segurança que surge, surgem duas chaves para o descodificar. Mas os jornais atrasaram-se na adaptação ao digital. E continuam a ter muito que mudar para se voltarem a aproximar dos leitores.

Acredito firmemente que não podemos ser coniventes com a desintegração do frágil tecido jornalístico. Mas sei que os jornais também terão de se esforçar e fazer a sua parte.

imagem: The Free Pirate

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lançado às 21:45

Chover no molhado...

por Sarin, em 05.04.20

Esta coisa de toda a gente ter o direito de opinar é uma conquista da Democracia.

A Liberdade de Expressão é uma conquista da Democracia, e a sua difusão é uma conquista da Tecnologia.

Mas a Opinião que todos têm o direito de emitir, essa é uma derrota - uma das mais amargas derrotas das Democracias actuais.

 

Porque as políticas educativas têm falhado aos cidadãos, criando multidões de papagaios acríticos que sabem ler mas não interpretar, que sabem sentir mas não criar, que sabem navegar mas não aportar.

E a democratização da informação vai parindo, afinal, especialistas da literalidade, censores do argumento, heróis da falácia, deuses do julgamento.

E o raciocínio, senhores, porque vos dá tantas dores?

 

A interpretação de cada facto será feita à luz do conhecimento e da sensibilidade de cada um. Mas interrogo-me o que terá falhado na formação do cidadão para, perante uma chamada de atenção para a insuficiência do conhecimento em determinada linha de argumento, preferir debitar mais um pouco de ignorância em vez de tentar perceber a falha, assumi-la e optar por argumento mais sólido.

 

 

Enfim, achataram-me a curva da paciência com vírus que já estavam em mitigação e nem consegui perceber que raio andaria o vírus a mitigar!

 

Nota: a ilustração do postal foi-se por entre os pingos da chuva.

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lançado às 00:39

A pandemia não mata ninguém, pá!

por Sarin, em 02.04.20

Leio em vários órgãos que "a Pandemia já fez x vítimas mortais", "morreram y devido à pandemia" e outras frases semelhantes.

Percebo perfeitamente o que significa, também eu talvez o diga e, até, o escreva num comentário mais rápido - porque sai naturalmente a quem consciente do significado. Mas, devido à polémica da Mitigação, apercebo-me que esta associação de palavras poderá, esta sim, contribuir para confundir quem menos acostumado ao termo, levando a entender pandemia como sinónimo de calamidade. Não que uma pandemia não seja um acontecimento grave, mas pode não ser tão catastrófica como os receios que o termo suscita.

Uma pandemia é uma doença ou enfermidade que se espalhou pelo mundo num determinado espaço de tempo. Pode ser uma doença altamente debilitante, pode ser uma doença letal ou pode ser uma doença que, nem sendo letal nem sendo altamente debilitante, provoque constrangimentos nos serviços de saúde que, sobrecarregados, ficam sem capacidade de resposta a doenças mais graves. E, esta, é uma calamidade em grande escala - por causa da pandemia, não por ser a pandemia. Porque a pandemia não mata ninguém, o que pode matar é o agente infeccioso que está na sua origem. 

Este agente infeccioso pode ser um vírus, uma bactéria, um fungo ou outro agente que tenha a capacidade de se reproduzir ou de provocar a sua replicação (nesta pandemia, é o vírus SARS-CoV-2; numa emergência de saúde pública muito famosa foi um prião - que, à luz do conhecimento actual, mais não é do que um bocado de proteína defeituosa). Os agentes precisam de um hospedeiro para se reproduzirem/replicarem, e cada espécie (ou cada tipo, no caso de vírus e priões) de agente tem muitas espécies hospedeiras à escolha, entre peixes, insectos, répteis, mamíferos, aves... basta que consigam entrar no organismo de um indivíduo e multiplicar-se, e já está, eis a doença! Há alguns agentes que não são nada esquisitos e arranjam mais do que uma espécie hospedeira, e quem não se lembra das Encefalopatia Espongiforme dos Felinos (FSE) e dos Bovinos (BSE) - esta última a ter relação com a doença de Creutzfeldt-Jakob, a das Vacas Loucas? Pois é, de quando em vez, os hospedeiros somos nós, humanos - que, e até prova em contrário, seremos a única espécie do planeta capaz de identificar e registar estes fenómenos. E, depois, ainda há aqueles agentes que, tendo várias espécies hospedeiras, não fazem mal (ou ainda não percebemos o mal que fazem) a algumas (a que se dá o nome de vectores) porque querem é uma boleia para as outras - como o agente da malária, um ser dos mais elementares que existem (protozoários) mas que lá arranjou forma de passar de um mosquito para um humano porque não consegue passar de um humano para outro humano.

Quando ataca um indivíduo, o agente pode ser combatido e derrotado pelo sistema imunitário do indivíduo atacado, caso em que perde a guerra e não há infecção; mas, se o sistema imunitário não tiver armas adequadas ou suficientes para o combate, o agente ganha e instala-se, e ainda tentará saltar para outro indivíduo - todas as espécies são como que impelidas à reprodução, e os agentes infecciosos não são excepção. Até os priões, sobre os quais não se pode dizer que se reproduzem, têm a capacidade de se replicarem, ou seja, multiplicam-se e fazem estragos.

Para dificultar as coisas, o indivíduo infectado pode não manifestar doença - o agente anda a passear pelo seu organismo mas, por qualquer motivo (do agente ou do indivíduo) não o perturba e o indivíduo não apresenta quaisquer sintomas. Passa a ser um doente assintomático, que ficará, sem se aperceber, portador do agente infeccioso. Mas, porque o indivíduo está realmente infectado, não significa que não venha a desenvolver os sintomas mais tarde - o indivíduo torna-se uma bomba-relógio, a menos que haja medicação eficaz.

O primeiro indivíduo que desenvolver a doença ganha o nome de paciente zero, ou seja, é a partir deste autêntico campo minado que se tentam encontrar as cadeias de transmissão. Porque cada infectado acabará por infectar outros, mas numa fase inicial só se identifica a infecção nos que apresentam sintomas, naqueles em que o agente já está a ganhar o combate - principalmente quando a doença é nova. Quando, numa mesma pequena região, surgem vários indivíduos com a mesma doença em datas próximas, estamos perante um surto.

Tudo começa com um surto, e se não se conseguirem identificar, controlar e cortar as cadeias de transmissão, os casos aumentarão, a doença alastrará a outras regiões e transformar-se-á em epidemia. Não há um número exacto para dizer quando se passa de surto para epidemia, pois a forma de o agente se transmitir de indivíduo para indivíduo e a capacidade de permanecer viável (isto é, com capacidade infecciosa) fora do hospedeiro, determinam a sua capacidade de contágio - e tanto podemos ter um surto com muitos casos como com poucos. 

A pandemia é oficialmente declarada pela Organização Mundial de Saúde quando, num determinado espaço de tempo, os surtos e as epidemias ocorrem em diferentes pontos do mundo - significa que as cadeias de transmissão cruzaram fronteiras geográficas e saltaram continentes, como se os agentes infecciosos andassem na pesca por arrastão e levassem tudo a eito. Como se tem visto.

 

Surto, Epidemia e Pandemia são, nada mais, nada menos, do que classificações quanto à disseminação e à área  geográfica abrangida por uma doença, nada tendo a ver com a gravidade da doença nem com a mortalidade dela resultante. Há agentes com uma elevada capacidade infecciosa (o vírus do Ébola ou o HIV, por exemplo), mas cuja capacidade de contágio é baixa (ninguém fica infectado apenas por tocar um objecto tocado por um infectado por HIV, por exemplo) ou as cadeias de transmissão estão bem controladas, motivo pelo qual alguns nunca chegam a causar epidemias ou pandemias.

 

E, já agora, onde encaixam as endemias?

Normalmente, os agentes infecciosos que dão origem aos surtos, às epidemias e às pandemias surgem, deixam-se estar um bocado a fazer os seus estragos, e desaparecem - na maior parte das vezes porque o homem consegue descobrir os mecanismos para travar quer o contágio (a tal quebra das cadeias de transmissão) quer a infecção (as vacinas e, por favor, respeitem as vacinas!).

Mas há situações em que tal não se verifica, e os agentes fixam-se nas zonas onde as condições para a sua proliferação estão asseguradas. As doenças tornam-se endémicas, porque as cadeias de transmissão nunca são completamente cortadas. Por exemplo, a malária, cujo vírus só precisa de águas estagnadas e de um calorzinho para que os insectos-vectores proliferem - mesmo que as populações tenham saneamento adequado (a maioria não tem), fica sempre por controlar o factor Natureza. A única forma de erradicar tais endemias é pela imunização das populações.

A imunização não é simples, pois basta uma mutação (não quaquer uma) no agente para que a vacina perca eficácia. Geralmente, também não sai barata, que entre investigação, teste, produção e distribuição as farmacêuticas podem não fazer o mais difícil (quantas vezes a investigação não é desenvolvida em centros universitários públicos?), mas cobram por todo o trabalho. E, ao contrário do que alguns teorizaram (e, mais grave, testaram na população, veja-se o Reino Unido), não basta expor as populações aos agentes e fazer figas para que os organismos reajam - se assim fosse, as endemias já estariam erradicadas há muito!

Enfim, o postal já vai em testamento e ainda nem sei como o ilustrar, por isso fico-me por aqui. Até porque eu só queria esclarecer aquela coisa de a pandemia matar gente.

 

pandemic.jpg

imagem colhida no ICTQ

 

[Cuidemos de todos cuidando de nós: Etiqueta respiratória. Higiene. Distância física. Calma. Senso. Civismo.]
[há dias de muita inspiração. outros que não. nada como espreitar também os postais anteriores]

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lançado às 07:55

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