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1 de Agosto de 1979

por Sarin, em 01.08.19

Bem cedo, despedi-me da então apenas-minha Tia, do meu Tio, do meu Primo Mais Velho e do meu Primo Mais Novo, e entrei no carro.

Não me lembro do que lhes disse, provavelmente terei perguntado se não podiam vir connosco, parece que perguntava muitas vezes. E o meu Primo Mais Velho, mais velho que eu onze anos e meio, terá talvez brincado como lhe era natural, "Traz-me um copo de neve" ou algo assim.

Não esperava ver a minha Prima naquele dia - vivia um pouco mais longe com o Marido e o meu Priminho, bebé de dezanove meses. Mas ela ali estava, à entrada da casa da  minha Tia sua mãe. Tinha andado no ar a ideia do passeio conjunto, e quando a vi pensei que, talvez...

Quase gritadas da porta, soltei as palavras "Vêm connosco? Entra, cabes entre mim e a Avó!" e a minha Prima respondeu "Não posso, querida, o teu Priminho está doente; e o meu Marido não está aqui" "Ele vem depois, de mota", respondi entusiasmada com a de novo possibilidade. Sorriu, os olhos preocupados abraçando o meu Priminho agitado pela febre, e respondeu "Faz boa viagem, e até segunda."

Ela ficou onde estava; sairia horas mais tarde com o meu Primo Mais Velho, o irmão mais novo dois anos que a levaria ao médico enquanto o marido trabalhava. E eu segui no carro que arrancou, sentada entre a minha Mãe e a nossa Avó.

 

Haveria de regressar não na segunda-feira mas nessa mesma madrugada. Numa viagem cheia de sobressaltos e quase-acidentes provocados pelas lágrimas que, escondidas, toldavam os olhos de todos menos do Avô, desconhecedor do porquê de termos regressado mal havíamos chegado, as tendas deixadas para que o compadre, o meu outro Avô, o paterno, as trouxesse depois.

Recordo os pirilampos do carro da polícia que passou por nós, por este meu Avô que me levava pela mão dos meus 7 anos ao bar do campismo de Manteigas, e de despreocupada ter dito "Alguém se portou mal...". Lembro-nos ambos intrigados ao vermos as luzes brilharem paradas ao lado dos nossos carros - que, saberia muito depois, as patrulhas haviam procurado toda a tarde pelas estradas e parques da Serra. Lembro como quase corremos e chegámos a tempo de ver os guardas desviarem-se com os meus pais, de ver como estes se abraçaram e, pouco depois e sozinhos, se refugiaram num passeio até à  sombra dos penedos e do anoitecer. A GNR abandonou o espaço e os meus pais também, abraçados e mudos ao nosso espanto ainda distante, a Avó e o Avô maternos desaparecidos, talvez a tratar do jantar, e por isso tão ignorantes como nós. Mudos continuámos o meu Avô e eu, aguardando.

Quando os meus Pais regressaram do que me pareceu uma longa ausência, a angústia saiu-me sob pergunta "Vamos ser presos?" "Não, querida, os senhores vieram avisar-nos de que a Tia está doente e temos de voltar".

Recordo a preocupação e a tristeza que nos acompanharam, o Avô e eu acreditando que a Filha Mais Velha, a Tia, estava doente. A meio da viagem descobri uma ponta da verdade, solta num gemido involuntário da Avó que me abraçava; ponta que puxei até obter verdade suficiente para me esclarecer as ideias e escurecer os olhos não mais secos por dias. Ao Avô só seria revelada à entrada do Hospital de Leiria... Recordo o grito que, ferido, desferiu na madrugada e ouço ainda o baque do seu corpo abatido não sei onde ou como,  revejo as batas brancas em correria, a espera, as lágrimas enfim soltas e a minha pergunta contínua, redonda, rotunda no peito afinal de todos "Mas... é mesmo verdade?"

Recordo a chegada a casa, às casas onde não entrámos porque ficámos metros ao lado, na da Tia, desde o início da tarde cheia de familiares e amigos e vizinhos - lembro os sussurros gemidos, o sufoco, o vómito que me acometeu quando percebi ser verdade, ser mesmo verdade. A Tia desmaiava a cada 5 minutos, o Primo Mais Novo, mais velho que eu, chorava abraçado a si mesmo, o Tio esmurrava paredes na rua, e todos os outros pareciam marionetas movendo-se longe naquela casa apinhada de gente e de torpor e de estupor magoado... lembro o frio e os cobertores em pleno Agosto, recordo a viola pousada num canto, sem canto sem notas sem som - talvez o único objecto em silêncio naqueles dias.

Não recordo mais nada dessa noite em que ninguém dormiu, ou se dormiu foi a fingir - só as lágrimas e os gemidos e a opressão de perceber que a tristeza que nos unia também me isolava, presa na pergunta "Porquê?" que toda a noite durante muitas noites zuniu na minha cabeça.

Às 9 da manhã amigos levaram-me para casa de uma amiga da minha idade. Fui contrariada; queria estar com a família, era ali o meu lugar. Mas não, não podia ficar, disseram-me, o ambiente não era bom para ninguém e muito menos "para uma menina de sete anos". O Primo Mais Novo ficou - já tinha onze.

Envelheci muitos anos naquelas horas, criança com uma dor adulta e madura renovada em cada morto que desde então chorei, um luto nunca totalmente feito apesar do Tempo, a pesar no tempo e em todos os lutos que fiz depois.

E o Primo Mais Novo passou a ser O Primo. Os outros, na volta do médico, ficaram na curva do caminho.

 

[Cuidemos de todos cuidando de nós: Etiqueta respiratória. Higiene. Distância física. Calma. Senso. Civismo.]
[há dias de muita inspiração. outros que não. nada como espreitar também os postais anteriores]

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e uma viagem diferente



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